domingo, 23 de fevereiro de 2014 | Filed in:
Lutar
contra o desejo. É sina e é duro. Aprendi que por trás do desejo está o ego.
Não quero fortalecer o ego. Mas meu desejo é grande! De quedar aqui e me
entregar a este amor profundo, ao prazer intenso que eu sinto aqui, diante da
minha janela e de todas as ferramentas que me permitem escrever. A faxina me
chama, a organização da casa, o tanque com suas roupas sujas; as roupas que
precisam ser passadas e guardadas; o quintal, as calçadas; os trabalhos dos
alunos que precisam ser olhados, lidos, atualizados... tudo isto grita! Me
chamando, neste sábado à tarde... mas eu quero ouvir música e registrar meus
pensamentos, meus sentimentos! Desço, lavo a louça. Subo e escrevo. Desço, tiro
roupa da máquina, estendo no varal, reabasteço a máquina e subo. Escrevo.
Desço, passo pano na cozinha. Subo. Escrevo. Desço e fora da casa, subo até a
grutinha onde está Nossa Senhora das Dores, limpo, perfumo. Desço o morro.
Entro em casa, subo. Escrevo. Desço, limpo um banheiro. Subo. Escrevo. Ouço uma
música. Minha vida assim, sempre nestes hiatos. Sempre dividida. Anseio por
inteireza. Anseio por algo que é meu, mas que ainda não assumi. Presa aos
outros lados meus, conhecidos, antigos e que não querem ceder seu espaço.
Responsabilidades com o alheio me chamam, cobram atenção. Não consigo assumir
responsabilidade comigo mesma.
A beleza ao redor da gruta, o
acolhimento da Mãe, o mato verde, silencioso e sensível, mostraram-me, com
clareza, meu desejo. E não parecia egóico. Parecia bonito. Parecia bom. Parecia
certo que eu me sentasse e deixasse tudo o mais pra lá. Seguindo meu desejo.
Fico tentada. Sento. Escrevo. Mas o dever me chama. Lá vou eu, outra vez.
Antes, pensei: e se eu morro daqui a pouco? Tanta coisa para escrever sobre
tudo que ouço dos ventos, do calor, da magia das noites, do balanço das árvores;
do que leio nos olhos dos outros e no seu perfil de encontro aos dias... e se a
morte vier e me encontrar com tudo isto por fazer e com tanta organização
externa para concluir?... Morrer assim, no meio do capítulo, morrer na metade
de tudo. Não dá. A tarde está tão bonita! Tenho que encontrar uma
alternativa...
No carro, sigo devagarinho, a fila
dupla. Kenny G vira meu coração do avesso. Muros e armaduras, os que ainda
resistiam, caem. Sinal vermelho. A fila para. A névoa nos meus olhos, ao
contrário, me faz enxergar melhor e eu vejo, dentro da música. Os carros, na
transversal, passam rapidamente suas vidas. Meu Deus! Tanto olhar diferente!
Tanta história. E eu comungo com eles, como se fôssemos íntimos, na solidão e no passado.
Lembranças vêm aos borbotões, intensas e vivas. Nossa dor comum. Não nossa
alegria, pois esta é única, singular! Mas a dor, sim. É comum. Dor das perdas,
das separações, das injustiças, dos fracassos, das pequenas mortes, dos terríveis
desencontros, dos equívocos, das fragilidades, as amarras, das prisões
voluntárias ou inconscientes. Dor do que foi e não é mais e que por isto, não é
mais nem dor e, sim, saudade! Como o sentimento por um filho que está longe;
como a impotência diante da dor do outro, especialmente se é um querido; como vivências
do passado, que vão acordando, aqui e ali, marcantes, inesquecíveis, vivas! Tanta
coisa poderia ter sido diferente. A voz e o sorriso e a singularidade de
queridos que já se foram ou se distanciaram: ai que fundo! Será que podíamos
ter aprofundado mais? A saudade seria menor, se tivéssemos dado maior atenção e
valor ao que tínhamos lá? Sinal verde. A fila se movimenta, a vida continua; eu
preciso, também, ir em frente, com estas minhas intensidades, meus fantasmas e
incompletudes. A vida tem espaço para todas estas coisas, ir e voltar no tempo,
mas ela exige atenção ao presente e à continuidade. Meus momentos passados,
inclusive este último, agora, vão comigo, alguns de comum acordo, outros
arrastados... só aquietam quando fazemos acordo, nos olhamos e nos fundimos no
papel, transformados em letras e palavras.
Ave Maria, cheia de graça! O senhor é convosco...
This entry was posted on 07:55
You can follow any responses to this entry through
the RSS 2.0 feed.
You can leave a response,
or trackback from your own site.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
0 comentários:
Postar um comentário