segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020 | Filed in:
Voltava do
mercado. Anoitecia mas a rua, contornos e buracos ainda eram bem visíveis.
Estava muito cansada; mal suportando o tempo de chegar em casa, guardar tudo e,
finalmente, descansar... Observei, que, à frente, à esquerda, duas
senhoras seguiam a passos lentos, descansadamente... Perto da esquina onde eu
deveria dobrar, passei por elas e, surpresa, ouvi:
- “Nossa! Uma véia dirigindo”...
- “É! E não é que ela dirige bem”?!!!
Claro! Não havia dúvida nenhuma a respeito da destinatária daqueles
elogios eloquentes! Fiquei chateada, sim. Fiquei! Quando olhei para elas; vi
que eram tão velhas como eu e me dirigiam risos debochados. Não gostei do
deboche. Não me fez bem. Eu poderia rir com elas, se não fosse o deboche:
que mal tem uma velha dirigindo bem?!!!
Refleti, depois, como sempre faço quando algo externo “me pega”. Se eu não
quisesse ser chamada de “véia”, deveria pintar os cabelos; fazer plástica.
Concluí que o meu ”chateamento” não vinha da palavra “véia”, porque estou, de
fato, velha (claro que não “tãããooo velha”, ainda!!!!); adoro meus cabelos
brancos; assumidos porque não suportava aquele ritual mensal de ir ao salão,
“fazer a raiz” e porque gosto desta fase e do que ela me proporciona: ser avó e
ter mais paciência, tolerância para lidar com minhas questões internas e com o
outro, qualquer outro.
O meu “chateamento” vinha do deboche. E do implícito no deboche; nas
exclamações e nos risos debochados. Teriam, elas, feito este mesmo comentário
se fosse um “véio” que estivesse dirigindo, meu marido, por exemplo? Desejaria
tanto dar este crédito a elas! Considerar que o que eu poderia interpretar como
“ojeriza”, “menosprezo”, “quizila”, “estranhamento”, “execração”,
“malquerença”, “objeção” (para não usar os termos “preconceito” e
“desrespeito”, tão “batidos” e, sim, alguns sinônimos) a uma pessoa (eu, no
caso) por estar enquadrada em dois quesitos bem sensíveis e visados: velha e
mulher; foi apenas uma “ingênua brincadeira”, uma “bobiça” do momento. Queria
dar a elas o benefício da dúvida e não fazer um prejulgamento; engrossando esta
fila terrível...
Porém, o deboche é uma grosseria, um insulto. As ressalvas, objeções,
banalizações, senões a isto e aquilo e a este ou aquela, por causa da sua
condição singular e do momento, são dolorosas e têm graves consequências. Eu
não desejo maximizar o ocorrido; tampouco, minimizar. Só pensar. Conversar um
pouquinho...
Tenho ouvido que as pessoas estão fazendo muito “mimimi”, exagerando com
questões de bullying, preconceito, etc; e que há um tempo atrás, muitas destas
coisas eram consideradas normais; não tinha problema. Não concordo. Sempre teve
problema! O que não tinha era espaço e acolhimento para fala e escuta. Quem dá
os “apelidos”; faz os comentários, acha e sempre achou “mimimi”. Aquele que
ouve, não. Uma vez, numa escola, ouvi alguém chamar a colega de “banana”.
Eu intervi imediatamente: “o nome dela não é banana; respeite”!. Mas a
própria garota disse: “não faz mal, professora, ele pode me chamar de
“banana”, é meu amigo”! Na semana seguinte, procurou-me: “professora,
não estou gostando! Todo mundo está me chamando de “banana”; eu não quero, me
ajuda”!.... Tive, no início da adolescência, uma professora de Educação
Física muito competente e exigente. No jogo de vôlei, ela gritava para mim: “pega
a bola, bibelô”! Nunca consegui pegar a bola e nem jogar vôlei.
Na verdade, nunca podemos prever o que deixará marcas ou não. Por isto, a melhor
coisa que temos de conquista, hoje, neste sentido, é poder falar sobre isto!
Dizer ao outro como nos sentimos a respeito. Isto é bom para ele, também! Se,
naquela época, eu tivesse feito uma queixa aos meus pais, provavelmente eles
diriam que eu deveria me esforçar mais; que a professora estava certa. Mas eu
não me atreveria a fazer isto: imagine, questionar a atitude, a fala de um
adulto, um professor! Depois de adulta, fiz muita piada com isto, para
disfarçar; mas de verdade, foi sério e me paralisou para o vôlei; até mesmo nas
brincadeiras fora da escola.
A fala e a escuta são das coisas mais importantes que temos. Eu pude falar
disto, um dia, na análise e ver o quão fundo tinha ido... E aqueles que não têm
escuta? Nem condições de ir numa análise? Muitos disseram e dirão: “mas que
coisa boba”, “quanto mimimi”! De fato, o que não nos atinge, parece bobeira.
Eu e meus irmãos nos chamamos de “mano véio”, “mana véia”! E circula, por aí,
uma gíria: “véio” pra cá, “véio” pra lá... São contextos diferentes. Há um
consenso. Um lugar. Uma cumplicidade. Diferente dos outros contextos e da
intenção de menosprezar, diminuir, ferir. Por isto, importante falar,
conversar, refletir. Não banalizar; não tornar “lugar comum”.
Parece que são as pequenas coisas do cotidiano que vão sendo repetidas,
repassadas, inadvertidamente, sem reflexão, atualização; por ignorância ou só
por “brincadeirinha”; as que vão cristalizando dentro de nós e nos impedem
viver em paz, reconhecendo o direito, a forma, o lugar, o sentimento, a
vontade, a vez e a voz do outro, qualquer outro.
Doloroso constatar esta falta de percepção de si e do contexto; esta falta de
empatia e tolerância. Eu penso que podemos, sim, avançar e deixar de lado os
“mimimis”; que pra mim, são as justificativas dos indelicados, grosseiros e
narcisistas e não as queixas daqueles que se sentem desrespeitados. Podemos
amadurecer e deixar a infantilidade de lado; nos reconhecendo e reconhecendo o
outro, qualquer outro. Falando e escutando: assim aprenderemos conviver com
respeito e leveza. Brincadeira é tudo de bom quando todos se divertem.
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