domingo, 4 de janeiro de 2015 | Filed in:
Em casa, ficamos assistindo a noite
vestir suas roupagens, acostumando nossos olhos às sombras. Vencido o primeiro
momento do desconforto e das lamentações, nos aquietamos e acomodamos ao novo;
na verdade, ao velho; ao que já foi um dia.
Algo bonito desvelou-se diante de nossas
janelas! A chuva parou. O vento aquietou. Uma mansidão nos envolveu e o desejo
de conversar nos mobilizou, sem pressa, sem ansiedade. Contemplamos o contorno
dos morros, mais delineado; vimos o céu
mudando de cor suavemente e a cantoria da passarada amainando... até surgir
aquele silêncio preenchido de sossego e os vagalumes aparecerem! Lindos!
Riscando a noite, agora totalmente escura, como se fossem fósforos acesos aqui
e ali, por criaturas aladas... Fizeram um bailado por entre as árvores da mata
ao redor. Uns viam seus reflexos nas janelas e se aproximavam, pensando que
eram outros vagalumes companheiros, batendo de leve nos vidros. Dois deles entraram
dentro de casa. Meu filho pegou e pudemos verificar suas “luzes”, esverdeada e amarela .. coisa bela! Como pode? Mãe natureza abençoada,
com estes filhos tão singulares!!!! Ficaram um tempo ali, diante de nós, todos
eles, numa performance maravilhosa de movimentos e brilhos, sensibilizando
nosso olhar.
Conversas e lembranças foram surgindo,
numa proximidade gostosa; onde a escuta foi a tônica. Bom escutar a voz do
outro, no escurinho. Descobrir tons, nuances... Por momentos fechei os olhos e
me detive neste escutar... maravilhoso! Minha mãe lembrou coisas da infância,
vivida em Ijuí (RS); de quando não havia luz elétrica e utilizavam lampiões; de
quando os banheiros era fora de casa e à noite usavam os pinicos, guardados
embaixo das camas. Lembrou; de quando, por falta de água suficiente, nas casas,
a mãe dela, duas vezes por semana, escolhia uma das filhas para ajudar;
colocava toda a roupa da família, que era grande, num cesto e as duas iam,
cedinho, de carroça, para a beira de um rio, longe da casa. Lá, passavam o dia,
retornando só à tardinha. Lavavam toda a roupa no rio; umas deixavam por um
tempo “quarando”, estendidas ao sol, no gramado verdinho ao redor do rio e
depois esperavam todas secarem ao sabor do vento e do calor, estendendo-as
sobre arbustos e árvores. Levavam lanche para o almoço. Antes de voltar para
casa, dobravam tudo bem arrumadinho... assim passavam o dia, nesta lida
trabalhosa; sem imaginar que um dia
existiria sabão em pó, máquina de lavar,
secadora e varal de todos os tipos... Detalhe importante é que o rio, este e os
outros que banhavam a cidade, eram de águas limpas! Podiam lavar as roupas e
podiam banhar-se; num outro momento.
Meu
marido lembrou da infância na colônia, no interiorzão de Nova Prata (RS) ; onde
também não havia luz e de como, seu pai, um homem simples, mas inventivo e de rara inteligência, levou luz
para casa, produzindo sua própria energia, construindo uma roda d’água e
aproveitando as águas do rio que passava perto. Lembrou de pequenas\grandes
coisas que aos poucos foram trazendo conforto
e diminuindo o trabalho para a família, construídas pela mão do pai e
aprendidas pelos filhos, que atentamente observavam e valoravam os feitos do
pai.
Meu
pai lembrou do tempo em que viajava (e sua profissão era conhecida como
“caixeiro viajante”) por precárias estradas de chão, pelo interior do RS e divisa com SC... sujeito ao
barro ou ao pó e de como era grande a solidariedade e acolhimento dos fregueses
em suas “lojas”, “bolichos”, “atacados”, “vendas” ou “comércios”, espalhados
aqui e ali, em distantes povoados; vilas, cidadezinhas, beiras de estradas,
“fim de mundos”; convidando-o para
almoçar, tomar um refresco ou para
pernoitar nas casas; partilhando o que tinham.
E
eu lembrei do meu nono, Isidoro. Depois da “janta”, quando eu era criança, a
mãe lavava a louça e descíamos (pois morávamos numa rua mais elevada; quem
conhece Ijuí, sabe dos “sobes e desces”) para fazer uma visita, um serão na
casa do nono e da nona, que moravam umas duas quadras de casa. Não conhecíamos
televisão, ainda. E o bom era ir na casa dos parentes, conversar. Nós,
crianças, adorávamos ouvir as conversas dos adultos e ficávamos ao redor ou
no colo deles, quietinhos, ouvindo...
Bom mesmo era ir na casa dos nonos! Na
minha lembrança, a nona Virgínia era
mais séria, cara de brava e um pouco resmungona. Sempre tinha uma reclamação de
algo, alguém; especialmente criticava as modernidades; das quais não gostava e
às quais os netos estavam sujeitos e por quem ela temia; eu nem lembro quais
eram estas modernidades... mas me esforçava para agradar a nona. E ela sempre
tinha um doce para agradar a gente! Eu esperava com ansiedade o momento em que
ela preparava um pratinho e colocava em cima da mesa para que nós nos
servíssemos... O nono “Doro”, como alguns chamavam, era muito alegre! Pelo
menos na minha lembrança! Falava muito alto! Tinha um cabelo grande e uma barba
descuidada, embranquecida. Pegava a gente no colo! Cantva e contava “causos”,
histórias que entremeava com silêncios; quando ou tomava uns goles de chá de
mate ou preparava um “paiero”, um cigarro de palha. Eu gostava de vê-lo
preparando o “paiero”: cortar as tirinhas de fumo, que tinha a aparência de um
salame preto; abrir a palha de milho; arrumar o fumo picadinho, desfiadinho
dentro e depois enrolar, devagarinho, até ficar pronto... daí, acendia, fumava
e soltava a fumaça para cima, sem pressa... e aquele cheiro de fumo ia tomando
conta do ambiente... tão bom! Era um ritual fantástico! Eu achava o nono um
homem muito forte e importante. À medida que fui crescendo, aprendi a admirar meus
avós e pais pela vida e feitos que viveram: todos uns sobreviventes vitoriosos
e valorosos. Hoje, de modo geral, dá-se muito pouco valor ao que temos e ao que
nos foi legado pelos pais e outros que nos precederam. É uma pena! Falta às
crianças estes modelos para admirar e nos quais se espelhar.
A noite terminou, para nós, desta forma
inusitada e rica, num dos balneários mais famosos de SC: sem luz! Acendemos uma
vela para chegarmos até nossos quartos. Depois, com certeza, cada um ficou a
sós com suas recordações e reflexões. Os sonhos, com certeza, belos. Os meus,
pelo menos, sim! Feito vagalumes batendo na minha janela...
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