Silêncio preenchido

- Hoje somos só nós duas, para o almoço, fofuchinha!
- Almoço só de meninas, né, vovó!
- Hãhã...
- Vó, deixa que eu me sirvo! Já sou grande!
- Você tem 3 anos e já é grande?
- Claro, vó.... olha como sei pegar as ervilhas...
- Tá bom querida! Mas a vovó vai servir o peixinho e o arroz...
- Tá bom, vó...
Antes, tínhamos visto o lagarto adolescente entrar no galinheiro e apavorar as galinhas! Ela ficou com medo, mas viu que as galinhas não perderam a pose e puseram o lagarto pra correr. Ficou contente! E antes disto, havíamos apreciado dois botõezinhos de uma roseira abrindo-se suavemente ao redor do lago. Eram lindos aqueles dois "filhinhos" da roseira! E bem antes disto, no início da manhã, tínhamos curtido o sol, na calçada em frente de casa: ela na motoca e eu empurrando o carrinho de boneca, com a boneca dentro. Depois, revezamos: eu, empurrando a motoca e ela, o carrinho com a boneca. Eu, empurrando o carrinho e a motoca e ela levando a boneca no colo, porque ela estava chorando, queria o colinho da mãe, ela. Eu, empurrando o carrinho e a motoca com ela no colo, porque descobriu um machucadinho no pé. E ela, com a boneca no colo! De onde saíram tantos braços e mãos, de repente, no meu corpo?!!! Lembrei tanto aquela história adorável:  “Suriléa-mãe-monstrinha”, da Eva Furnari! Tudo a ver!
Agora, éramos as duas ao redor da mesa, almoçando. Nos servimos e começamos a comer. Percebi que ela ficou em silêncio; o que era inédito. Eu também. Ela se servia e enquanto mastigava, se recostava na cadeira e completamente relaxada, olhava ora para frente, ora para os lados, contemplando com tranqüilidade, os verdes, a luz do dia. Eu contemplava também, com o coração preenchido de uma quietude infinita e de amor silenciosamente transbordante. Olhava seus olhinhos e via ali, sossego. De quando em quando, entre uma colherada, uma mastigada e outra; um relaxamento e outro; um olhar pousado aqui e ali; ela me olhava e me fazia um carinho no braço, como se dissesse  (mas não dizia):
- “Está tudo bem, vovó”! - e como era bom imaginar que era isto que ela queria mesmo dizer!
Ficamos assim, por muito, muito tempo... Num silêncio cúmplice, preenchido de significados, ali, naquele encontro de três mundos: o dela, o meu e o nosso. Algo muito intenso. Reconfortante. Apaziguador. Organizador.
Ainda estou sob o efeito daquele silêncio. Pensando que no cotidiano, falamos demais. Estimulamos demais. "Enlouquecemos" as crianças e uns aos outros com tanto falatório. Um falatório, na maioria das vezes, oco. Que não serve para nada. Só angustia. Machuca.
Não à oquidão! Mil vezes o silêncio preenchido com as conversas entre os olhos, a alma e o coração.

 

0 comentários:


Minha foto
2023, 14o aniversário do Blog! O meu desejo, por estes tempos, é de um pouco de calma, um pouco de paciência, um pouco de doçura, de maciez, por favor! Deixar chover, dentro! Regar a alma, o coração, as proximidades, os laços, os afetos, a ternura! Um pouco de silêncio, por favor! Para prestar atenção, relaxar o corpo, afrouxar os braços para que eles se moldem num abraço!

Arquivo do blog