08 - REVISÃO

     O ano finda outra vez e outro já se instaura... tudo, como sempre, muito junto; uma coisa ligada ou nas pegadas da outra... Olha para trás, para um ontem bastante longínquo, quando estava imaginando como seria este hoje, 30, 40, 50 anos depois. O que mudou? Observa que foi um fazer sem fim! E bom, de coisas boas, junto com outras, muito, muito duras. Fundas coisas. Intensas. Nada superficial. Um grande zigue-zague na procura das peças do quebra-cabeça. Coisas surpreendentes. Até inusitadas. O que não foi surpresa e sempre constante: o sonho, o medo de errar e a culpa diante do erro. E as coisas mais bonitas: a maternidade, o aprendizado do amor e o morrer e o nascer ininterrupto, que ficou com maior sentido depois que conheceu a história da fênix. As surpresas foram os enganos: o que era para ser bonito e verdadeiro, não foi. E o que se anunciava como terrível, de fato foi a redenção. E a força veio, sempre que mais precisou, quando conseguiu olhar um pouco mais alto e continuar vendo a luz do sol e sentir o seu calor. E daqui para frente? Como será? Por quanto tempo ainda? Poderá fazer alguma coisa para que haja menos violência, mais paz no mundo? Poderá proteger aqueles que ama da dor, da doença, da desilusão, do egoísmo dos outros? Poderá encontrar, ainda, dentro de si, motivação para seguir no seu fazer apesar das limitações da idade, da frustração diante de alguns sonhos, da ignorância sobre tantas coisas, da impotência diante de questionamentos e demandas externas e internas? Quem pode saber? Não há como saber. Mas pode olhar o novo que chega com isto que ainda tem dentro de si: os olhos cheios de encantamento da “menina”; cheios de esperança da “mãe”, cheios de desejo de amar e produzir felicidades da “mulher” e cheios de confiança e força da “senhora” que já viveu muitas coisas e que se autoriza e desafia a viver, acolhendo um instante de cada vez, extraindo dele a sua essência.

07- Mitão e Delgadinha (1)

      Mitão vivenciou na pele um ditado popular que ele mesmo propagava: “quem desdenha quer comprar”. De verdade, ele era “o bom”, o esperto, o tal. Bom de bola, bom de papo, bom de olho. Nossa! Tinha um olho que via tudo. Tudo que ninguém via e que ele chamava de “lance”: -“... mas bah! Hoje vi um lance...”. E olha que sempre tinha alguém com ele, alguém que também via mas que de fato, realmente não via tudo o que ele via. Acredite: era uma delícia ouví-lo narrar o “lance”; era quase melhor do que ver. Mitão tinha o dom da narrativa, que enriquecia com expressões faciais e gestuais incomparáveis. Ah! E ele também era bom de fazer ironia, jogar com as palavras e fazer trocadilhos, especialmente em relação às mulheres; mas só depois que elas passavam ou não estavam presentes, porque tinha um código de honra: “não se fala bobagem e nem palavrão na frente de criança e de mulher”. Quando a mulher, sob sua ótica, estava fora dos padrões, fazia ironias, especialmente com as gordinhas: “olha só aquela delgadinha” e ria. Um dia, Mitão tremeu na base! Entrava no seu fusquinha verde limão quando foi assaltado: -“passa a grana, véio”...! Fechou os olhos e só conseguia pensar “é agora que vou me borrar todo”... quando ouviu: -“quieto aí, cara... !” Era uma voz feminina, fria, cortante. Mitão abriu os olhos a tempo de ver o ladrão fugindo. Depois olhou na direção de onde vinha a voz: -“você está bem, moço?...”. Era uma policial e se aproximava dele. Imediatamente o olhar investigador entrou em ação e avaliou: “bonitona”... “morena!”... e, “bem delgadinha”... Ela chegou mais perto e ele registrou: “é bonita mesmo!... ”. Ela sorriu e ele registrou: “simpática, uma bonequinha...”. Ela estendeu a mão e ele, todo atrapalhado, respondeu: -“ é delgadinha!...”. Ela fechou o sorriso: -“ O quê?...”.

06 - GATÍSSIMOS

         Um dia, estendendo roupa na lavanderia, escutei uns ruídos que vinham lá de baixo, do outro lado da cerca, de dentro do mato cheio de palmitos do vizinho. Olhei bem e vi uma gata se retorcendo e, um pouco mais longe, três gatinhos, pequenininhos! Chamei todo mundo, descemos e nos ocupamos dos pequeninos e quando fomos atrás da mãe, ela havia se jogado num riachinho e estava morta. Achamos que ela fora envenenada... Assim foi que o “sr Bóris Garcia, a srta Chanson Bege e srta Roxo Charruel” entraram para a nossa família. Não tínhamos experiência e fomos, aos poucos, aprendendo a cuidar deles; curtindo imensamente acompanhar seu crescimento. Quando ficou jovem, o Sr Bóris Garcia saiu para namorar. Era lindo, charmoso, altivo! Acho que fez o maior sucesso entre as gatas da vizinhança! Voltava para casa sempre de manhãzinha, faceiro e sonolento. Uma manhã não voltou e o encontramos morto, no asfalto em frente de casa. Chanson e Roxo ficaram por alguns dias bastante ariscas, inquietas. Roxo era mais selvagem, magra e um pouco desengonçada; evitava os chamegos. Chanson era meiga, dócil, adorava carinhos; era parecida com o Sr Bóris e tornou-se uma bela gata. Foi a primeira a namorar e ficar “grávida”. Viajamos e quando voltamos, percebemos que tinha dado à luz, mas não havia sinal de gatinho nenhum. O que aconteceu ainda hoje é um mistério... Ficou “prenhe” novamente e desta vez, encontramos apenas um gatinho, que parecia mal formado. Meu filho cuidou dele durante um mês inteirinho, com esmero, mas o pequenino não sobreviveu. Então, Roxo desabrochou, ficou "grávida" e a maternidade lhe acrescentou beleza e certa doçura. Nasceram cinco filhotes, lindos! Pudemos observar com enlevo cotidiano os cuidados dela para com eles; como amamentava com paciência e como os levava para passear, chamando-os para conhecer e desbravar caminhos; subir nos troncos das árvores.. e como ficava aflita quando um desaparecia de suas vistas, chamando-o veementemente! E como lambia a cada um com extremado capricho e afeto... Tivemos, com dor, que doar quatro e ficamos apenas com o Preto. Roxo “miou” muitos dias e noites, chamando por eles e isto foi desolador. Para evitar a repetição desta história, resolvemos castrar as duas gatas, que depois disto, ficaram mais caseiras e bonitas. Um dia, alguém abandonou um filhote cinza em frente de casa e ele entrou; nos apaixonamos por ele e o adotamos: nós, Chanson, Roxo e o Preto. E o chamamos de Sigfried, Sig. Temos aprendido tanto com eles, observando-os! A inclusão do Sig, na família gatíssima foi perfeita! Ele foi até amamentado e isto foi incrível, porque as gatas estavam castradas. Os quatro se amam e passam o dia cuidando um do outro, partilhando espaço; brincando, se exercitando, rolando pela grama, correndo atrás das borboletas, dos sapinhos e lagartixas. E comem e dormem e nos observam também. E se embelezam, evoluem, com certeza; pois o afeto que eles expressam é fora do comum, nos emociona e inspira! As patas dianteiras são como braços carinhosos com os quais eles se abraçam, se confortam e se ajudam; sem reservas, senões e porquês, numa entrega, um pro outro, incondicional. Quando querem ficar sozinhos, se afastam e se exercitam na liberdade de escolha. Na noite de Natal, ficaram surpresos com a movimentação diferente na casa, especialmente com a luzes; acompanhando tudo com atenção, nos interrogando com o olhar; mas discretos, mantendo-se no seu campo de ação. Sempre ouvi dizer que os gatos são traiçoeiros, arrogantes. Isto não se aplica, de jeito nenhum, aos nossos gatíssimos, que são, muito “gente fina” e então preciso concordar com um amigo querido que sempre fala que por vezes, os animais são melhores parceiros do que muitos “humanos”.


05 - "MÉDIO DE BONITO"

     Uma das coisas “tocantes”, entre tantas especiais que guardei e que fizeram com que me reencantasse  cotidianamente pelo meu trabalho, perseverando e acreditando nele, há mais de 30 anos; aconteceu no meu primeiro ano de trabalho numa escola, quando mudei de cidade e de estado, há uns 19, 20... anos atrás. Minha preferência era alfabetizar e logo fui informada, por colegas que nem conhecia, que de fato, havia uma classe de 1ª  série para mim; só com crianças repetentes, com problemas de aprendizado e comportamento. Entendi logo que era uma turma que ninguém queria e que bom que eu chegara, pois sendo “nova” no contexto, não tinha direito de escolha e ia passar pelo teste aplicado às “professoras novatas ”. Parece que havia um rótulo e uma tradição:  turmas difíceis, alunos com muitas demandas, muito trabalho,  desafio para as professoras recém chegadas no pedaço! Eu não questionei e aceitei.  Eu queria trabalhar, precisava trabalhar e vinha de experiências diferentes, onde não haviam estes rótulos e critérios.  Nunca gostei de saber  e nem de receber informações sobre os alunos que teria no ano seguinte, pois acreditava e ainda acredito que cada experiência é diferente e cada um deve ter o direito de fazer suas descobertas e construir  sua relação com o outro sem os “pré conceitos” de terceiros. Os alunos desta turma de 1ª série, de fato, estavam muito defasados, alguns repetindo a série pela  terceira, quarta vez. Não foi fácil, é verdade, principalmente porque, além de todas as dificuldades e carências envolvendo aspectos familiares, culturais, sociais e econômicos  comuns nas periferias; os alunos não aprendiam porque eles se achavam “burros”, feios, incapazes; ninguém acreditava neles, nem mesmo os familiares: “este menino é ruim da cabeça, professora... não aprende mesmo...” e, havia uma pessoa do grupo que dirigia a escola, que queria premiar, ao final de cada bimestre,  “os melhores”  alunos da sala. Algumas vezes eu consegui impedí-la, justificando o quanto todos estavam se esforçando e eram merecedores de premiação; mas em algum momento, ela se impunha, enquanto autoridade (tinha  seus motivos, justificativas) e todo trabalho de resgate da auto-estima dos alunos, ia por água abaixo com a classificação de 1º, 2º , 3º lugar... Presenciar a premiação seletiva e excludente, era muito triste e eu tentava compensar os não premiados com elogios, afeto e mostrando a eles o quanto estavam sabidos... Apesar disto, o trabalho fluiu e no final do ano, foi bonito demais! Foram todos aprovados! Não dentro de um “faz-de-conta”, mas também não com perfeição e nem com ortografia correta. Mas todos alfabéticos, conseguindo se expressar, decodificar e merecendo avançar! Havia  brilho nos seus olhos, alegria, desejo de aprender e uma confiança crescente em si mesmos! E havia um em especial... que me tirou muito sono e por isto, talvez eu o tenha amado mais do que os outros; porque tudo nele era para “menos” e tudo lhe parecia  impossibilitado. Ele foi o melhor presente, naquele ano (e me emociona ainda hoje) e talvez só me compreendam aqueles que vivenciaram algo parecido. Ele me presenteou com um pequeno texto, registrando do seu jeito e com poucas palavras, todo o seu resgate naquele ano, que começou com a percepção de si mesmo... :  Eu sou Sebastião, tenho 12 anos, tenho as pernas peludas, to ficando inteligente e sou médio de bonito...”  Eu nunca mais o encontrei, mas não esqueci e a sua expressão “médio de bonito”, ao longo dos anos mobilizou e motiva, ainda,  em mim, respeito pelo meu trabalho, reflexão, ação e afeto.

04- COLETIVO

       Gostava de observar a singularidades das pessoas em todos os lugares, especialmente nos ônibus coletivos e no salão de beleza. Olhar seus olhos, sua expressão. Ouvir o som de suas vozes. A forma como se movimentam e se posicionam nos contextos diferentes. E, então "adivinhar" suas histórias... Imaginava sempre uma história de amor em suas vidas! Uma paixão por algo... que fizesse o olho brilhar e o coração acelerar! E encontrava, também, sempre uma dor, uma perda ou algo inatingível, uma secura no fundo dos olhos. Algo que não fora regado e que ficara como uma promessa que não pode ser cumprida. Todos feito um jardim secreto, cheio de possibilidades, algumas impossibilitadas. Este observar produzia admiração e afeto pelo ser humano.


03 - NATAL

Mostrou-se outra vez

atualizando todos os outros,
renovando a magia
que as luzes, os enfeites
e as tradições
apenas ornamentam;
porque ele mesmo,
vive dentro,
na quietude do coração
durante o ano todo
gestando minha melhor parte.
Esta que também só se
manifesta em momentos
especiais, como agora,
quando sou
tocada pelo desejo
sincero e fundo
de ser verdadeira,
de corresponder
às expectativas
e esperanças que
borbulham, exigentes,
fortes, bonitas
no meu íntimo.
E mostrando-se,
o Natal, outra vez,
contextualiza
os seus símbolos e
resignifica
os presentes presentes:
estar aqui,
os meus sentidos,
e todos os queridos que
me ensinam sobre os
diferentes jeitos de amar.

02 - O Jardineiro

      Cheguei na casa da minha amiga junto com o jardineiro dela, uma pessoa que encontro seguidamente, lá; sempre sorridente. Um senhor dos seus sessenta anos, forte, aparentemente saudável, bem disposto. Digo aparentemente porque neste dia, quando nos cumprimentamos, ele respondeu, rindo, expressando dubiedade - esta característica comum presente em tantos que falam uma coisa e com os olhos ou sorriso falam outra e por isto não são respeitados ou acolhidos - que não estava bem porque era velho e que ser velho não tinha graça; nada valia a pena, nada tinha importância. Eu não encontrei algo para dizer a ele, mas fiquei com a imagem e palavras dele, empurrando a bicicleta, cabisbaixo, expondo, assim, tão de repente, sua intimidade. Todo mundo fala, até eu, que o mais importante é ter saúde, ter um trabalho com que se ocupar; forças para produzir, criar. E que o resto é o resto. Será? O jardineiro tem tudo isto e faz um trabalho lindo, basta ver o jardim da minha amiga. Será que o que está pesando são as limitações da condição de estar mais velho? Mas não deveria estar sábio e contente com a sua trajetória e porque, afinal, tem saúde e família, filhos, netos? Percebo que há uma infinitude de coisas presentes nesta fala e que são dele; mas percebo, também, que há algo comum e que independe da idade e que em algum momento aparece para todos: a falta. Falta algo e perceber isto é como cair um buraco escuro e sem fim, onde realmente, nada tem importância. De onde vem esta falta? Este vazio? E o que é que se mobiliza, também de repente, em muitos, fazendo com que consigam sair do buraco e se reencantar e outros não?

1º Dia

Foi uma idéia do meu filho: "mãe, por que você não cria um blog pra escrever coisas, já que você gosta tanto de escrever?...". Eu gostei. Escrevo pra mim, há muito tempo....Áté aqui, uma coleção de cadernos, agendas, arquivos, pastas com escritos; muitos queimados, outros perdidos, deletados e uns quantos, guardados, os mais queridos! Tenho desejo de partilhar. Não sei bem o quê; se idéias, ideais, sentimentos, percepções, vivências, temores, expectativas, sonhos... me encanta  os diferentes modos e jeitos de olhar e ver e fazer. Me encanta descobrir algo que antes não via num mesmo lugar, numa mesma questão, numa mesma pessoa e não necessariamente num  contexto novo. Me encanta os enlaces que as palavras fazem; sentir-me enlaçada por elas e, pelo mesmo movimento, enlaçada com o outro além de  mim: um algo, um o quê ou um quem, você, hem?!!! Me encanta descobrir a liberdade no uso da palavra; numa conquista gradativa de dizer o que é e o que há; na simplicidade e na luz. Me encanta contemplar e não comparar.


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2023, 14o aniversário do Blog! O meu desejo, por estes tempos, é de um pouco de calma, um pouco de paciência, um pouco de doçura, de maciez, por favor! Deixar chover, dentro! Regar a alma, o coração, as proximidades, os laços, os afetos, a ternura! Um pouco de silêncio, por favor! Para prestar atenção, relaxar o corpo, afrouxar os braços para que eles se moldem num abraço!

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