Ninho


Um ninho vazio dói
um ninho cheio, aperta.
Vazio, dá sossego
cheio, conforta.
Vazio é do meu jeito
cheio, o jeito é deles!
Vazio, economizo verbo
me derreto em letras,
cheio, me parto e multiplico
em tantas e em feitos,
feliz e comovida.
Vazio, saudade do cheio
cheio, saudade do vazio!
Vazio, é de chorar por nada
cheio, de rir  por tudo!
                De repente,
                vazio, fica cheio
                cheio, se esvazia.
                Antes morada
                agora, passeio.


Aprendiz


Aprendiz de mim,
com esforço e alguma paciência
aprendo interpretar silêncios,
desenhar meus sonhos com palavras,
colorir a vida com as
cores do meu desejo,
observar o mistério
da folha que cai, anônima,
investigar a magia do luar,
traduzir sorrisos e ausências,
apreciar as melodias do vento,
conjugar ações no tempo presente,
ler o que não vem escrito,
decompor a dor,
resumir os excessos de
atenção e palavras,
diminuir expectativas de harmonia,
perseverar no que é possível,
memorizar traços e jeitos
de quem amo e vejo tão pouco,
manter o meu espaço,
compreender as metáforas
da chuva e de olhos que
me vêem e me revelam,
respeitar e querer bem
o que consigo ser...

De manhã


Abri a janela.
A brisa macia
mentolada
atirou-se sobre mim
abraçou-me, faceira!
Tudo cantava!
Ganhei um abraço
que lembrou outro abraço.
Tudo poderia
ser feito de abraços!
Com abraços!
Banidos então o medo,
a solidão, as quedas,
a exclusão, a saudade...
Abraços e abraços!
Diferentes. De todos jeitos.
Os melhores: de reencontro,
de mãe, de amigo querido,
de acolhimento e de amor!
E da janela, feliz,
vi o sol abraçando o dia,
meu olhos abraçaram
o que eu via
e se agigantaram,
elásticos, até você,
quem meu abraço mais queria!

De tarde


Na brisa sutil e bailarina
as folhas da bananeira
flexionam, mas não se dobram,
a “raspa língua” se dobra
mas se vinga, “cortante”!
Cigarras e grilos “invisíveis”,
(atrás de que verdes se escondem?)
afinados e no compasso
ocupam todo espaço
em cantoria queixosa
arredondando o calor
na tarde emudecida.
Meu coração sério
de medir, ajustar, ponderar
sente saudade do riso
da impulsividade curiosa
da indisciplina teimosa
da felicidade de sonhar
com a felicidade.


Descoberta!


Quem gosta de ler e de escrever; adora ver os outros lendo e escrevendo! O trabalho me oportunizou este prazer imenso e sempre renovado de acompanhar o processo de alfabetização de inúmeras crianças, inclusive dos meus filhos. É muito especial. Ver os caminhos similares e\ou singulares que cada um percorre para  se apropriar dos códigos, associar letras e sons (e isto não é tão fácil como parece!)... como criam hipóteses, formulam idéias, elaboram e refinam o pensamento neste trabalho! E desenvolvem inteligência! E curiosidade! E desejo de aprender!... se permitimos que continuem pensando, indagando, experienciando! Nesta semana, retomando o trabalho, depois das férias, avaliava uma menina de 4 anos. Um presente! Depois de investigar questões lógico-matemáticas deixei que explorasse o espaço, o material e o caminho aberto para a conversa que fluiu sem parar e interessantíssima! “Vou desenhar...” – disse e desenhou três pessoas com traços básicos: cabeça, tronco, membros e dois olhos. Três mulheres: “ a mãe, eu e você”... “não podia deixar de desenhar você, pois está aqui comigo, agora...”. Fofa! Daí, resolveu que ia fazer contagem de numerais e foi contando até 49... “Parei! Só sei até aí!... não sei mais”. Quis escrever. Então desenhei um elefante. “É com “e”, falou. Eu pedi que registrasse. Ficou em dúvida: “como é o “e”?. Queria que eu dissesse. Eu disse que pensasse e fizesse como achava que fosse, sem problema. Ela pensou e registrou B ao lado do elefante. Me olhou, eu não disse nada; o combinado era fazer como pensava que fosse. Fomos adiante e associou corretamente as outras vogais aos desenhos que propus. Como estivesse motivada, desafiei: “do que você gosta de brincar? Prontamente respondeu: “de escolinha”. Eu disse: “então escreve esta palavra, aí, como você pensa que se escreve” . Voltou-se para o papel, posicionou-se e pôs-se a pensar alto: “ e...es..e...es” – ficou em dúvida; acho que lembrou da questão do elefante, acima! Pediu ajuda: “me diz como é este “e”...”. Eu disse: “olha ali o alfabeto... Observa, pensa e escolhe uma das letras...”. Ela olhou e logo disse: “é aquela ali”  e foi pronunciando as unidades sonoras: “es – co – li – nha...” e registrando uma letra para cada uma, tranquilamente: “EOIA”. Naquele momento descobriu o E e descobriu que “podia escrever”! Vi o brilho da compreensão, da descoberta nos seus olhinhos! E foi escrevendo tudo que eu sugeria, silabicamente: “ UIA (“furmiga”) ;  AIA (casinha); OEA (boneca)...”. Queria escrever mais e mais. Eu tive que sugerir que fizéssemos outra coisa. É que nós adultos, nestes momentos, “fervemos” de alegria... por dentro! Mas não dá para deslumbrar, pressionar! Tá bonito assim! Para que a pressa?! Ela quis finalizar: “quero escrever mamãe”. Pronto, pensei! Agora vamos ver como ela vai se sair para representar os sons nasalisados ... ela pensou, pensou... olhou pra lá e pra cá... e para mim,  mas não pediu ajuda; pronunciou a palavra inúmeras vezes, alto, baixinho; como se estivesse mastigando-a para sentir e descobrir o sabor! Até que registrou e justificou: “AIII (“acho que tem três “is”: mamaiii”)... Ganhou um beijo! Levantou e foi brincar com as outras crianças. Feliz! Este é o prazer, a alegria, o que alimenta o nosso amor pelo trabalho: redescobrir as coisas! Inventar tudo outra vez pelo olhar, pela lógica, pela palavra deles. Assim o encanto, na gente, permanece. Sempre recomeçando ou começando como se sempre fosse a primeira vez. 

Caminho


Caminho de Floripa
morros abraçados
pássaros em bando
voo sincronizado.
Sol nascendo
dourando os verdes
colorindo nuvens
desenhadas no céu.
Uma música...
aguça, inquieta.
Há  um segredo.
Um mistério de
sensações, cores, sons
sabores, ações, dizeres
que não encontro
ou não consigo ver,
simplesmente...

O professor

Nas férias, aproveitei para explorar, conhecer, navegar” (não gosto deste termo neste contexto, embora seja apropriado) pela internet e tive a grata surpresa de encontrar  o  blog do meu professor de Literatura, lá do tempo da Faculdade de Letras, nos idos de 77, 78 e 79. Hoje, um escritor famoso, Pró-reitor de Cultura e Extensão numa importante universidade do país. Fico contente por ele!  Bonito ver um professor que gosta de ser professor! Eu o julgava muito inteligente, desafiador e corajoso. Já era um escritor, na época e eu tinha orgulho de ser aluna dele. Suas aulas eram interessantíssimas; eu adorava! Adorava porque a matéria era apaixonante e porque ele cativava com sua fala expressiva, irreverente, singular; misturando humor, ironia, deboche, críticas vorazes e um vocabulário curioso! Usando com maestria tanto palavras comuns, quanto belas construções poéticas!  O meu mundo, o meu círculo era muito diferente e me encantava e por vezes tinha sobressaltos (!) com a forma como ele ia mostrando, descortinando outros mundo quando lia e esmiuçava obras literárias durante as aulas. Eu trabalhava de dia, mas não sentia cansaço algum, à noite. Era um prazer ouvir. E a paixão que eu via nos olhos e na fala do professor pelas letras, palavras e escritos alimentou a paixão e o vício que eu já tinha pela leitura e pela escrita.  No artigo recente que li no blog dele, ele fala, entre outras coisas,  um pouco deste papel do professor que deveria (mas nem sempre faz, acho que por ignorância ou incompetência; talvez ingenuidade ou comodismo; ou ...) exercer, o de mostrar, valorar e de encantar os alunos, através da leitura e da escrita, pelo que é nosso, brasileiro. Concordo tanto com ele! Talvez se um dia, nós professores e todos os “nós brasileiros” tivermos mais paixão e nos importarmos mais e verdadeiramente com o Brasil;  possamos aprender e viver (com) coisas que tanto queremos: respeito, justiça, ética, bons políticos e dirigentes...  e todas e tantas boas coisas, coletivas e individuais, presentes nas listas de cada um. Eu tive professores muito bons! Agradeço. Homens e mulheres. E gosto tanto do meu ofício! Um pouco, com certeza, por causa de cada um deles e também deste.

Chovendo....


Chove.
Água que
retorna
molha,
limpa,
embala,
alimenta
e assusta.
Interioriza,
fecunda.
Não sabe
disto,
apenas  se
entrega  e
cumpre.

Guardados (3) - "Carão"

         Vamos dançar?
     Era uma ofensa dar um "carão" num baile ou reunião dançante.  Algo que nós, mulheres aprendíamos cedo. “Você corre o risco de ouvir algo bem desagradável e até mesmo de apanhar de algum  homem mais “esquentado””, diziam-me, “se recusar a dançar com ele”! A orientação era para dançar ao menos uma música e,  se não gostasse do moço, agradecer. Minha mãe dizia para não ser indelicada. Nestes idos anos 70, gostava muito dos Bee Gees (ainda curto!), ABBA; do Roberto Carlos, Antonio Marcos (voz linda!),  do Tim Maia (“Você é mais do sei”...) e dos Incríveis! Gostava de “uma e outra” música do Ronnie Von (o príncipe!), do Marcio Greick (que tinha lindos cabelos cacheados!), Jerry Adriani, Wanderley Cardoso (havia uma rivalidade entre estes dois, as fãs se dividiam!!!!!), da Gal Costa, do Chico, da Rita Lee... Mas adorava as orquestras Ray Connif, Paul Muriat  e Frank Pourcell e as italianas românticas, pelas quais permaneço apaixonada. A turma da escola curtia e organizava nas casas, as reuniões dançantes; era uma “febre”. Os guris levavam as bebidas e as gurias, algo para comer. Fiz algumas no porão da minha casa. Meu Deus! Era um evento! Primeiro convencer os pais. Depois, organizar, fazer a faxina, deixar tudo arrumadinho; lugar para sentar, para colocar as bebidas, as comidas... E providenciar as luzinhas! Sim, porque tinha que haver uma penumbra (comportada, porque os pais, pelo menos os meus, fiscalizavam, mas penumbra era essencial!), que a gente conseguia com uma luz azul ou vermelha (de preferência azul, porque a vermelha podia ser mal interpretada, associada à luz de algum cabaré (nem sabíamos muito bem, acho, o que era ou como era um cabaré, mas sabíamos que tinha luz vermelha!). E depois esperar... Quem viria? Viria o garoto por quem nutríamos aquelas maravilhosas sensações que julgávamos ser amor eterno; nunca declarado, somente aos nossos diários e melhores amigas? Geralmente nunca vinha, porque nossos olhares quase sempre eram dirigidos aos rapazes mais velhos, das turmas mais adiantadas; que tinham namoradas ou que freqüentavam outros lugares. À estas reuniões nas nossas casas compareciam nossos colegas de aula. A maioria de nós, gurias, ficava um pouco decepcionada, mas nos divertíamos conversando, rindo e dançando; o que também era interessante, um aprendizado nesta lidança com o sexo oposto, para nós e para eles. Eu me sentia envergonhada, não sabia o que conversar enquanto dançava, as palavras sumiam e percebia que os colegas também estavam lidando com isto; ficavam trêmulos, os passos eram desajeitados, pisavam no pé da gente! Com certeza, para eles era um desafio maior; porque lhes cabia a iniciativa de vir “tirar para dançar”, enfrentando o risco de ouvir um “carão” (e lidar com isto, na frente dos outros?!); conduzir a dança e ainda agradar a colega na condução da mesma! Era muita coisa! Para nós, a tensão ficava por conta de esperar! Alguém viria nos “tirar para dançar”? Seria um guri legal ou seria um chato? Ele dançaria só uma música (o que também era horrível! Sinal de que não tinha gostado de dançar com a gente!) ou dançaria mais de uma? E se a gente não gostasse? Seria legal parar logo depois da primeira música? Ele ficaria chateado e seria grosseiro? E se de repente aparecesse um que não se comportasse; o que fazer? Empurrar, sair correndo, pedir para parar de dançar antes de acabar a música? E se ninguém viesse nos “tirar para dançar”? (o que me aconteceu muitas vezes) Como lidar com o fato de “fazer crochê” a noite inteira? “Ich! Aquela lá não dançou nada; fez crochê a noite inteira...” (não sei se comentavam de fato, mas este era um fantasma...). Nem por isto desistíamos de ir! E se por ventura o guri que gostávamos estivesse no baile, na reunião dançante ou na festa? Meus Deus! Aí sim a gente quase morria de emoção! Nossos olhos ficavam acompanhando o garoto, tempo todo e, se por acaso olhasse na direção em que estávamos, imaginávamos que era para nós que olhava e que logo viria nos “tirar para dançar”. Mas isto nunca acontecia, só com as outras! Nossa! Quanto sofrimento gostoso!!! E que rendia assunto ( a roupa, o sorriso, o cabelo, atitudes...) inesgotável para os diários e para animar os recreios, os intervalos... Poucas meninas eram seguras, confiantes em si mesmas para se mostrar e lançar na conquista; eram as meninas populares, sempre requisitadas para dançar e namorar. Acho que a recíproca era verdadeira para os meninos: havia os mais populares, os que tinham um “rosário” de garotas “apaixonadas” por eles. Gosto de lembrar, quando vem à lembrança... Impressionante e bonito como cada um vai reagindo e se colocando na vida a partir das experiências da infância e destas da adolescência e início da juventude. Bom quando tudo, mesmo o que foi difícil ou muito desafiador pode (pretérito) ser falado, escrito, compreendido, acolhido ou respeitado e transformado em caminho, direção, ideal, força, coragem, trabalho, motivação,  futuro virando presente; porque então valeu a pena. Será que hoje, os homens ainda temem “levar um carão” e as mulheres “fazer crochê”, nas relações? De repente me ocorre que a gente, homem ou mulher, na vida, dá muito “carão” à coisas importantes, julgando-as pela superfície e aparência. E perde. E faz muito “crochê”; ficando parada, presa à acomodação, preguiça, medo, insegurança. Não vamos à luta pelo que queremos. E perdemos.









         

Guardados (2) - Neta de vidraceiro


         Quando era pequena, ouvia muito a expressão “sai da frente! É filho de vidraceiro?” sempre que alguém se colocava, advertida ou inadvertidamente, na frente de algo. Quando acontecia comigo, eu brincava: “sim, sou neta de vidraceiro”! Meu avô paterno colocava molduras em quadros e isto incluía o trabalho com vidros. Eu achava o máximo o trabalho do vô. Ele trabalhava para uma  grande loja na cidade, na época. Tinha um canto só para ele. Na verdade, um lugar escuro, cheio de prateleiras. De um lado,  prateleiras estreitas e fundas, onde eram guardadas as molduras, umas varas compridas, de vários tipos. De outro, prateleiras mais largas, onde ficavam os vidros. Num outro canto, as ferramentas. Lembro de uma mesa, onde ele cortava os vidros, as molduras e montava os quadros. A gente podia visitar o vô, ali; ele trabalhava sozinho; com a porta aberta  para uma rua movimentada... Sempre que por perto, chegávamos para dar um “bom dia! Boa tarde, vô”! Ele gostava e convidava para sentar num banquinho. Eu gostava de ficar olhando para ele enquanto trabalhava. Era caprichoso e rápido na montagem dos quadros. Era bonito ver! Íamos conversando coisas, que não guardei. Guardei o carinho com que me recebia e oferecia os taquinhos das molduras que sobravam. Tinha uns tão lindos! Com bordas douradas, outras prateadas, com relevos... eu me encantava! E levava pra casa, cheia de alegria. Contavam que ele tivera problemas sérios com bebidas por muito tempo, anos antes. Mas eu não conheci este vô. Eu só lembro deste que era doce e tímido, olhos observadores, acolhedores. Tinha pavor de chamar atenção; ser inconveniente, atrapalhar os outros;  falava baixinho. Meu pai, nesta época, era “caixeiro viajante”; ficava toda semana fora de casa. O vô se preocupava com a gente e uma ou duas noites, na semana, aparecia lá em casa, depois da janta; bem na hora em que a mãe passava roupa e eu e meus irmão estávamos ao redor da mesa, fazendo as tarefas de escola. Ele conversava com a mãe, pegava meus irmãos menores no colo e cantava baixinho, meio envergonhado a música do cavalinho, em alemão... era tão bom... Ficava uma hora mais ou menos e depois ia embora. Nos sentíamos queridos. O vô era destas pessoas que não invadem e não impõe presença, mas estão sempre perto, parceiras e respeitosas. Eu o vi pela última vez, no Natal de 1980, quando minha filha nasceu. Soube que depois de conhecer a bisneta ele falou para alguém: - “Vocês não sabem o que me fizeram... me fizeram bisavô !!!”. Faleceu uns dias depois. Eu guardo estas imagens e sua voz, junto com a da vó, cantando: “o  tannenbaum, o  tannenbaum, wie grün sind deine blätter...”.

Guardados (1) - Enxoval


         Tinha quatorze anos quando soube que minha mãe fazia o meu enxoval. Pacienciosamente e com orgulho, ela o foi organizando, ano após ano... cada mês comprava uma coisa ou um conjunto de coisas; fazendo alguns malabarismos para “se virar” com o dinheiro que o pai permitia e era possível, mas nunca extravagâncias! Afinal, era uma coisa muito importante preparar o enxoval de uma filha e quando casei, aos vinte e um, tinha coisas pra casa inteira! E se eu não me casasse? (!) Toalhas de mesa, de banho, de rosto; louças, “coberta de mesa”; lençóis, enfeites, panos de pratos, tapetinhos... e guardanapos de crochê (muitos, de tamanhos e cores diversas!); colchas, acolchoados, cobertores, utilidades de cozinha, panelas... nossa! Era muita coisa... tudo arrumadinho, limpinho, cheirosinho! De quando em quando a gente abria o “baú” (onde tudo ficava bem guardado) para arejar, admirar, ver o que faltava... um ritual. Avós, tias, primas, amigas, todas, no decorrer dos anos, de um ou de outro jeito, iam contribuindo para alimentar o baú. Eu mesma, depois que comecei trabalhar, aos dezoito, de quando em quando encontrava uma relíquia que guardava no baú.  A gente se preparava para algo muito importante, que viria! Saber que este baú existia produzia um misto de agradável expectativa, ansiedade e certo temor secreto: e se eu não encontrasse o príncipe? Sim, porque eu queria encontrar o príncipe. Viver o ritual todo, até o fim; como todas (?), típico. E tinha valor, imenso valor. Não era só o baú. Não eram só os objetos. Eram sonhos ali guardados. Será que hoje, mães ainda fazem o enxoval para as filhas, neste estilo? Eu não fiz para minha filha. Quando chegou a hora, corremos para comprar o essencial. Há um jeito novo de ver o casamento, o trabalho, as relações. Diferente. Hoje, especificamente em relação às coisas da casa, tantas novidades todos os dias; muita oferta e tudo fácil para descartar, trocar. Minha filha ficou surpresa quando mostrei a ela um lençol ainda em uso, lá do tempo do baú; mais de trinta e cinco anos...

Dever cumprido


Uma bela faxina!
Coisa boa!
Mexer em tudo,
colocar para fora,
para arejar, pegar sol.
Lavar com água corrente.
Tirar o pó. Desinfetar.
Tirar do fundo,  redescobrir.
Reciclar? Como escolher?
Recuperar a cor, o brilho.
Parede, chão, vidros, armários,
toalhas, guardanapos de crochê!
Aqueles do enxoval! Meu Deus!
Feitos pela vó... tantos anos...
Tantas lembranças!
O cheiro da vó, a voz sussurrante...
os bolinhos de cravo e canela...
a cadeira de balanço,
os discos “em alemão”.... o crochê!
As mãos ágeis tecendo formas,
rendas, contornos delicados,
guardanapos brancos, engomados!
Lindos! Relíquias! 
Saudade! Saudade!
Cansaço! O corpo todo dói.
Coração sossegado.
A alma sorri!
Uma boa  e funda faxina
é muito bom!

Rotina?


As aracuãs sempre voltam. Todas as manhãs, cedinho se encontram na bananeira ou perto dos palmitos. Ali fazem um alarido! Combinam algo e saem, escandalosas! Perco-as de vista antes de perder o rastro da sua cantoria... Todos os dias. Rotina. Todos os dias, à mesma hora, Chanson, Roxo, Preto e Sig, os gatinhos, se a ração não está nos potinhos, vêm à janela ou à porta, chamar por um de nós; miando sua queixa, cada um do seu jeito; naturalmente, Sig, mais “reclamão” do que as gatinhas; que miam cheias de charme e “manha”. Depois fazem um soninho. Rotina. A tireóide também reclama uma rotina, que eu acorde sempre meia hora mais cedo para tomar a medicação.  O relógio não para; não importa se é férias. Hora do almoço. Hora disto e daquilo. No sentimento, nas reações, também a rotina, a repetição. Se elogiam, a gente fica contente; se criticam, ficamos, no mínimo mexidos... e tudo se repete e repete, com pequenos detalhes inovadores; umas “roupitas” diferentes. E eu sempre me imagino numa grande roda gigante. A vida, uma roda gigante. Dizem mesmo que todos estamos presos, atados à roda do “samsara”... Sentada na "minha cadeirinha", eu me arrisco, porque tenho fobia de alturas (herdada do meu pai. E me arrisco porque sou teimosa, ariana teimosa! E se a gente não se arrisca, vive?) e me sinto realmente girar (viver) nos movimentos da roda; por vezes girando lentamente, por vezes tão veloz que  quando me dou conta, já é segunda-feira, novamente! Às vezes a roda para em cima, embaixo, no meio... alternando, também, minhas emoções, estados de ânimo, atitudes... de acordo com a situação que me espera em cada parada. Altos de alegria, sobressaltos de felicidade, de ficar sem fôlego, paralisada de emoção (e, por vezes, de medo, medo de ser feliz!); encantada por demais! Baixos de impotência, desilusão, inércia, medo (de agir), insegurança e culpas. E tempos de estabilidade, nem lá e nem cá... em paz, até mesmo com as impossibilidades. Muitas vezes, a cadeirinha ao lado, vazia; tempo de quietude ou solidão mesmo. Por vezes, senta alguém qualquer, não interage e não acrescenta. Por vezes, alguém que mexe e estimula todos os medos, raivas e todos os “ismos” que levam para baixo. Por vezes, alguém que toma minhas mãos, que partilha; olha junto, dá um abraço, eleva. Rotina, dentro das alternâncias, das “giradas”.  Mas... inusitados ocorrem! Sempre que eu permito.  Posso fechar ou abrir os olhos. E quando escolho ver, abrindo os olhos, não do jeito normal, mas abrindo mais e mais... e um pouquinho só mais “adelante” da superfície, do primeiro plano, encontro o encanto! Aí, não tem rotina. Tudo é novo, sempre primeira vez.

Calçada molhada


Calçada molhada
quietude na mata
folhas equilibram
gotas coloridas de sol
marcas da chuva
que passou e não vi.
No morro brilhante
tornado verde
pela magia do dia
nuvens ancoradas
se espreguiçam
e se vestem e desvestem
assim como vi e
nunca mais esqueci
numa montanha distante.
Tempo que ficou presente.

Sonhos

Do latim somnium (sonho, ilusão, sonhar com) ou insomnium  (sonho, visão em sonhos), que, por sua vez, deriva do grego  enýpnium (sonho, visão, aparição em sonhos).
         Eu gosto da palavra, acho bonita e o conteúdo também e, que faz parte de um lado da vida da gente “meio mágico”, sobre o qual não há um consenso. Existem muitos escritos sobre os sonhos. Muitas teorias,  linhas filosóficas, classificações, explicações e até guia para interpretações. Estudos, histórias, experiências interessantíssimas. Eu acho fantástica esta capacidade ( só humana?) de sonhar. Sonhos de sonhar acordado são uma delícia! Embora isto signifique, para os outros, “viver no mundo da lua”; estar “fora da casinha”... Mas é muito bom olhar uma foto, uma lembrança, um objeto; contemplar a natureza, ouvir uma música e voluntariamente enveredar por outros caminhos, diferentes destes que a gente traçou e viajar, com a mala cheia de egoísmo, desenhando tudo de outro jeito, do jeito que o desejo (?), o ego (?) ou a alma (?) da gente quer! E depois escrever histórias, poesias,  melodias como resultado destas incursões. Porém, isto é uma brincadeira e é preciso saber brincar, para não se machucar, fazer confusão entre realidade e imaginação.  Mas fantásticos mesmo são os  sonhos que todos, até mesmo os “dentro da casinha”, os “pés no chão” sonham. Estes de recostar a cabeça no travesseiro, dormir e, isentos (aparentemente) de qualquer culpa,  sermos levados para onde, de forma muito guardada, como se fosse um tesouro preciosíssimo, o desejo (?), o ego (?) ou a alma (?) da gente quer! Num primeiro momento, eu até me encantei em procurar o significado dos meus sonhos em livros e listas de interpretações; mas, agora, me tornei cética. Os sonhos fazem parte de uma categoria muito pessoal, muito íntima. Não é de banalizar, ficar contando pra todo mundo; uma exceção, talvez  para alguém próximo; que possa entrar nesta intimidade e se encaixar neste universo sensível. Eu acho que os sonhos são “segredos secretíssimos” que contamos para nós mesmos; quando não estamos felizes ou muito distantes de nós mesmos ou daqueles a quem amamos muito. Pelo menos esta é minha experiência. Os meus me falam de mim, de quem eu sou, do que eu quero, do que é importante para mim, pessoa, mulher e me trazem notícias dos meus queridos mais queridos; lembram que estou com saudade, desmascaram meus medos, meus desejos encobertos, minhas tristezas. Eles não poupam; estão sempre atualizando o que se passa, mesmo coisas que eu, racionalmente, não quero; mas que estão lá, bem vivas e latentes, no fundo. Às vezes vêm até um pouco disfarçados para não chocar demais. Estudá-los é um bom jeito de nos conhecermos um pouco mais. Acho fascinante adentrar neste mundo!                                  

Uma dor

Desassossego. Medo!
Impotência. Perder tudo
para a lama faminta
que desce pelo morro
desgovernada e cega.
Perder para a água
também perdida 
e desorientada
que sobe pelas ruas,
pelas paredes,
encurralando e engolindo
sem querer, sem planejar
colocada num curso
que não é o seu.
Mistura de terra, água,
lágrimas, corpos,
esperanças e trabalho,
anos de história enterrados
nos escombros,
como um punhal no peito.
É dor insuportável!
Dor da terra, violentada,
Dor do rio, envenenado
Dor do homem, equivocado
Dor de quem olha, paralisado.
Dor do vazio: 
nunca mais será!
Dor por esta fragilidade
de  não saber
não esperar
não dominar.
Será que alguém devia
cuidar e não respeitou?
Alguém devia saber
e não ensinou?
Agora, abraçar e cuidar
com  compaixão e respeito
das feridas, destes buracos
que ficaram na terra e no coração;
cicatrizes, dor sem remédio.
Sem esquecer, por favor,  
a interrogação.

Artistas disfarçados

São muitos os instrumentos de um artista... argila, madeira, metal, papel, tecido, tinta, espátula, martelo, lixa, torno,  pincel, tesoura, cola, lápis, giz, notas e instrumentos musicais... Com eles cria obras bonitas, que encantam, enfeitam, inspiram lugares, pessoas, momentos... a vida! No cotidiano, se observamos bem, descobrimos artistas desconhecidos como tal, em todas as áreas, utilizando outros instrumentos; igualmente produzindo belezas, mas  disfarçados de professores, construtores, mecânicos, médicos, jardineiros, cientistas, vendedores, enfermeiras, cozinheiros, dentistas... Estes, os disfarçados, têm olhos especiais e uma sensibilidade viva e fazem do seu trabalho, uma obra de arte! Eles riem, se ocupam e são felizes com o que fazem.  E se dedicam e também sofrem porque querem e esperam algo mais do que prestar um serviço e receber um valor por ele e muitas vezes são criticados, impedidos, banalizados, incompreendidos justamente por não se limitarem a fazer o que têm que fazer... Mas é que estão disfarçados de profissionais, lembra? Eles querem um pouco mais do que só fazer o seu ofício! Gostam de ver um  trabalho bem feito; muito mais do que bem feito: perfeito! Exigentes e perfeccionistas como de fato, são os artistas. E como todo artista, estes, os disfarçados, olham e vêem possibilidades e beleza onde outros não vêem e não acreditam! Vêem a beleza latente, escondida. Vêem o que pode vir a ser! E eles se dedicam para que o trabalho fique como o têm na sua imaginação, no seu desejo. Não se preocupam muito ou não se preocupam quase nada com o tempo; se é noite, dia; se é segunda ou se é domingo; dia útil ou feriado. Mas sentem cansaço; porque tudo tem um preço. Também desanimam, se irritam, se questionam sobre o porquê fazer e por vezes relaxam, pensam em fazer menos, se ocupar menos; fazer só o trivial. Mas há um chamamento inquietante, pulsante de fazer, de procurar, de transformar, descobrir “algo mais”! Apreciam cada etapa do trabalho, se deliciando com o processo! E se deleitam contemplando o trabalho concluído e gostam de ser  por ele recompensados por um salário, um valor e muito, muito mais pelo brilho de felicidade, valoração e reconhecimento do outro e pela satisfação pessoal, interna e por vezes inominável de se descobrirem capazes de contribuir colocando mais beleza, saúde, alegria, bem estar, conforto, novas possibilidades de vida, na vida! E, naturalmente, sempre considerando que ainda poderiam melhorar uma coisinha aqui, acrescentar algo ali, dedicar mais um tempinho lá... olhos curiosos, brilhantes, exteriorizando parte de sua alma sedenta e generosa, que cuida, quando a maioria só quer ser cuidada.
          Conheço muitos! Já recebi tantos cuidados, em tantos momentos... e sou profundamente grata.

Ternura

A mãe tinha uma camiseta cor de rosa, grande, que gostava de usar para dormir. Era confortável, macia, uma delícia! A filha visitou a mãe. Estava muito quente e ela não estava se sentindo bem; um pouco febril; talvez uma gripe se insinuando. Tomou banho e foi no quarto da mãe; pegou uma camiseta qualquer para descansar um pouquinho. Era a camiseta cor de rosa! Depois de algum tempo comentou com a mãe o quanto era gostoso vestir e estar com aquela camiseta; sentia uma energia boa; sentia-se melhor. Pediu para levar a camiseta para casa, para dormir com ela naquela noite; pois de fato, lhe fazia muito bem estar com ela; não sabia explicar muito bem; mas fazia. A mãe deixou; era um momento especial; que a fazia lembrar de quando a filha era pequena e precisava dela, de quando em quando, do seu abraço e da sua mão para dormir, para afastar os medos, as coisas ruins.  No outro dia a filha ligou agradecendo; dizendo que dormira muito bem; que estava melhor. A mãe ficou feliz! Uma felicidade  grande provocada por estas pequenas coisas que, ainda bem, povoam o cotidiano; não têm explicação lógica, nem tradução; mas inundam de ternura o coração!


Abelhas

Precisam do nosso olhar
nossa voz
nosso cuidar.
Agonizam
como rios, 
florestas,
nascentes e...
o sol poente!
Como a 
ararinha azul
a onça pintada,
o peixe boi
a harpia, 
o lobo-guará
a surucucu e o o mico-leão...
Como agonizam
os que não têm chão,
os mal amados
mal cuidados
pouco acarinhados.
Como agonizam
na fartura,
os bem nutridos
adormecidos.
Quem vai cuidar
das abelhinhas
do ar, da água
do amor...
alimentos vitais
neste corre-corre
insano para saciar o
“quero mais e mais”?

Dias iguais

                                        De repente                                      
sem mais encanto
sem canto e
sem pranto.

A roda gigante
girou num instante
a vida e o lugar;
deixou distante
uma ilusão, doce acreditar.

Era perturbador
riso cachoeira
cor de arco-íris
cheio de brilho,
de luz e  calor
minha inspiração,
amor. E se foi.

Sentou e descansou
no caminho árido;
lá ficou, acomodou
dormiu sonhos pálidos
acordou dias iguais
frios, secos, reais.


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2023, 14o aniversário do Blog! O meu desejo, por estes tempos, é de um pouco de calma, um pouco de paciência, um pouco de doçura, de maciez, por favor! Deixar chover, dentro! Regar a alma, o coração, as proximidades, os laços, os afetos, a ternura! Um pouco de silêncio, por favor! Para prestar atenção, relaxar o corpo, afrouxar os braços para que eles se moldem num abraço!

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