Fazedora de sonhos

O sonho alimenta. Acalma, fortalece. Salva, muitas vezes. É doce, perfumado. Muito quente, queima! Por causa do recheio. Precisa degustar com paciência, delicadeza. Saber saborear é uma arte! Fica melhor ainda com acompanhamentos: um café, chá, chimarrão; uma conversa. Dá trabalho. Exige preparo, atenção, cuidado, precisão e tempo. E o ponto certo.  A um menor descuido, vacilo, o sonho “desanda”, não dá certo. Fica melhor ainda quando sonhado em parceria: eu sonho, tu sonhas, ele sonha... e juntos, nós sonhamos! Sonhar junto é muito bom! Sonho lambuza e gruda e permanece; a gente sempre vai descobrindo uns “restinhos de açúcar” aqui e ali, na boca, na roupa, no chão! É de lamber os dedos e os “beiços”. Faz rir de contentamento, de felicidade infantil; daquelas fundas e espontâneas! Tem gosto de “quero mais”. Na medida certa é o melhor; pois satisfaz, preenche. Em exagero, entucha e provoca mal estar; a realidade fica muito dura. Todos podem comer. A contraindicação parece estar no açúcar da cobertura. Aprendi, ontem com dois diabéticos, que eles podem consumir sonhos, mas sem esta cobertura e com muita moderação. 
A fazedora de sonhos mantém esta arte viva, a de fazer sonhos! Ela guarda os ingredientes na memória, que é fantástica, diga-se de passagem! Não tem preguiça de fazer e nem de ensinar. Faça frio, chuva, calor ou cansaço; segunda ou domingo ou férias. O sonho é maior do que tudo! Ela também aprecia, mas o prazer maior está em fazer, em proporcionar o prazer de comer e de se lambuzar aos outros e de ensinar a quem quiser aprender. Na verdade, poucos têm este interesse de pôr a mão na massa. Muito fácil ir na padaria e comprar sonhos feitos; feitos pela fazedora de sonhos do dono da padaria, que a gente nem conhece e não sabe nosso gosto. Delicioso é ter uma fazedora de sonhos ao lado da gente, nossa! Vê-la em ação, passo a passo, pacienciosa e competente, “tecendo” e misturando com habilidade, os ingredientes visíveis e os sutis que permite que os espectadores acrescentem, ali, na roda da feitura do sonho: palpites, confidências, um riso, uma piada, uma lembrança, uma reclamatória, um choro, uma crítica... que dão ao sonho, um sabor singular, do agrado de cada um e de todos, ao mesmo tempo!
Que os Anjos dos Sonhos protejam e inspirem todos os fazedores de sonhos, especialmente a nossa Silvia! Também proteja e guarde a fazedora de sonhos que há dentro de cada um de nós, para que não deixemos de sonhar! Não esqueçamos dos ingredientes específicos para sonhar nossos sonhos!
Sonhar é bom demais! Duro é aprender a arte de sonhar e consumir sonhos com moderação!






































Casinha

Brincar de casinha! Mamãe, papai e filhinha! Me encanta! Impressionante ficar observando como as crianças gostam e se articulam e organizam para brincar; como distribuem os papéis, quando em grupo. Por vezes acontecem impasses e disputas; mas geralmente concordam e fazem circular os papéis, depois de definidos. E ali, na casinha, reproduzem suas percepções, as falas, atitudes, tons e jeitos dos adultos do seu convívio. Quando a gente se reconhece em algumas delas, descobre como a criança “nos lê”, interpreta; o que sinaliza muitas coisas e nos oportuniza reflexão e mudança. Fiquei surpresa quando vi minha neta brincando de “mamãe”, tão pequenina! Ninando, alimentando suas bonecas; conversando com elas amorosamente; fazendo coisas na casa, "imitando" ações das mulheres do seu convívio. Não se trata somente de uma pura e simples imitação do universo adulto; mas também de uma identificação com o mundo feminino.
O vovô construiu uma casinha num espaço singular, protegendo uma árvore que passa pelo meio da varandinha. Os objetos foram aparecendo e compondo o ambiente; presentinhos da vovó, dos dindos, do papai e da mamãe, dos tios e de alguns amigos. Algumas coisas recicladas. Uma festa para Maria! Tapetinho na porta. Varalzinho na varanda. Prateleirinhas, mesa e cadeirinhas. E as filhinhas! E  a lidança começa...
Hora de recolher a roupa, no varal... “E agora... "(ela repete quando quer sinalizar que vai mudar de foco)...
Hora de passar e dobrar. "E agora..."

Hora de cortar os legumes e preparar a sopa... "E agora..."
Hora de dar sopa às filhinhas: “Mari e Sorvetinha”... "E agora..."

Hora de pegar o baton da vovó.... "E agora..."  
Hora de receber visitas...
E conversa e risos!
Assim como acontece com as outras crianças, Maria vivencia a preciosa "fase do simbólico". Este é o seu mundo do agora. Encantador, rico e grande do ponto de vista do tamanho, da idade. Vai crescer  e enxergar outros “mundos”, outros horizontes, caminhos e possibilidades; outras coisas com as quais irá ou poderá  identificar-se e, que de repente, não  terão nada a ver com este “trinômio” que nos marca e singulariza na raiz: mulher X casa X maternidade. Muitas mulheres já não se ocupam das atividades da casa e muitas abdicam da maternidade em prol de outras coisas. Mas, agora, esta identificação  com estas questões é muito importante para  a descoberta e compreensão de si mesma, do seu gênero e do mundo que a cerca e desafia; para se organizar e situar no seu contexto; para trabalhar e expressar pensamentos e sentimentos; elaborar hipóteses e conceitos. Tão bonito isto! E tão bom: brincar de casinha! 
- "Vamu bincá di cajinha, vovó Isa! Vem... vem...". 
   
                                                                                                       

Aniversário do blog


Venho contando:
agora são cinco!
Um mundo
dentro do meu mundo,
espaço sagrado
dos meus
“não ditos”.
Cúmplice
das insônias
e das sutilezas
intraduzíveis.
intérprete
do meu olhar
e do meu coração.
Obrigada.

Natal


Em volta de uma criança, que é inocência; que é inspiração de ternura, amor, tolerância, nos quedamos emudecidos, contemplativos, emocionados e cheios de expectativas, de alegrias inexplicáveis. Uma criança agrega. Diante dela nos desvestimos e aparecemos como somos; conectamos com o que temos de melhor, de mais bonito e verdadeiro dentro de nós e do outro e assim temos a chance de escolher: seguir como somos e estamos ou... mudar! Diante de uma criança nos “apequenamos”, descendo do salto, dos cargos e títulos; sentamos no chão e se quisermos, nos tornamos grandes na humildade, na simplicidade, na ética e na solidariedade. Pastores, reis e sábios, um dia, num estábulo, quedaram assim, diante de um menino recém nascido, um pequenino que era GRANDE! A criança externa está sempre nos lembrando da nossa essência e, assim, como ela, nossa essência demanda cuidados, atenção, acolhimento, espaço, escuta e respeito.

Desapego

A mãe entrou na sala onde eu estava, apreensiva. Uma jovem mãe. Estava preocupada porque sua filhinha, de 1 ano e 7 meses, iria fazer seu primeiro passeio de topic com os colegas de escola. Um passeio curtinho; mas o primeiro da pequena sem a presença do pai e da mãe ou de um dos avós, que comumente ajudam, na lidança com ela, no cotidiano. Observei o quanto ela era bela e o quanto mais bela era nesta condição de mãe, esquecida de si e focada na filha! Os olhos brilhavam numa mistura de inquietude, orgulho, insegurança e expectativa que singulariza, aproxima e unifica todas as mães do mundo diante do  filho, a partir do momento em que ele descobre e avança no mundo, desligando-se dela e começa caminhar com suas próprias pernas, rumo a um desconhecido, rival e apaixonante! Ela queria e autorizara que a filha fosse ao passeio; mas temia que fosse. Temia o que todas nós, tememos: o inusitado desconhecido e nossa impotência diante do seu humor instável e planos. Ela pediu-me, olhos suplicantes e brilhantes:
- “Olha pra mim! Veja se ela senta direitinho na cadeirinha; se o cinto está bem  colocado... se ela tomou água e se está tudo bem, antes da topic sair...”.
Eu via a fragilidade e a força, ali juntas: a mãe titubeante, oscilando entre a mãe que teme e a mãe que encaminha; a mãe que entrega e a mãe que prende....  a mãe insegura e a mãe confiante. Desejei abraçá-la para confortar e garantir, plenamente, que tudo sairia bem. Tenho desejado, inúmeras vezes nesta vida, este poder de garantir, além de desejar. Mas não tenho. Aquela mãe querida não era somente uma mãe de aluno. Era minha filha. E cada um destes meus papéis, ali: professora, mãe e avó ficaram muito distintos e em nenhum deles eu estava confortável; no momento. Mas eu precisava dar uma resposta. E ali, naquele contexto, respondi como professora, como profissional que sou e que acredita no seu trabalho: que tudo estava bem organizado, ficasse tranquila. E estava e, como sempre,  correu tudo bem! E amadurecemos mais um pouco, as  três: eu, a vó; ela, a mãe e a pequena, que se encanta cada vez mais  com o mundo e nos convoca a tantas perguntas e respostas, desafios, aprendizados e redescobertas.

Senta aqui, vovó!

         



Ela esperava por mim. Uma senhora desconhecida, tímida, um pouco ansiosa. Enquanto me estendia a mão, também entregava um bilhete. Nele, uma ex-colega apresentava esta senhora e solicitava que eu a escutasse. Fiquei um pouco tensa, tentando adivinhar o que ela queria, o que esperava de mim. Sentamos para conversar...
Ela era mãe. Também era empregada doméstica, analfabeta; sozinha, com uma porção de filhos para criar. Estava pedindo socorro, desesperada com a situação de um destes filhos, pequeno ainda, que não se ajusta mais à escola, às regras, às leis; agressivo e com grande dificuldade para o aprendizado; “ainda não sabe ler e não tem vontade de aprender, de fazer tarefas escolares...” . Uma mãe dedicada, que via o filho sofrer e produzir desconforto aos outros, desajustado.  Ela buscava uma ajuda, uma palavra, um horizonte, sedenta: “professora, eu faço qualquer coisa para ajudar meu filho! O que a senhora disser para eu fazer, para onde ir, onde buscar... eu faço, eu vou... Não sei ler, mas eu vou perguntando aqui e ali... eu acho, eu chego lá...!” Estar ali, segundo ela, era o último lugar, última esperança... Contou-me que espera, a cada dia, que este filho seja chamado, inscrito que está, num destes programas municipais de atendimento especializado infância; preocupada, porque sabe e sente que o menino precisa de ajuda urgente, imediata e ela não vem (realidade triste da saúde e da educação no nosso país)... Eu tive vontade de dizer a ela que eu tinha escuta, mas não tinha o poder do milagre! Mas calei e ouvi, ouvi, ouvi... tanta coisa triste e também tanta coisa bonita de superação e luta... Eu tinha que manter a esperança, não só a dela; a minha também. Ela chorou e eu também, por dentro, porque por fora, eu estava “só ouvidos”. Esta escuta e um encaminhamento para contatar a pessoa  certa para a ajuda concreta, foi o que eu pude (tão pouco) dar a ela naquele momento. Minha alma de cidadã, de mãe, de avó e de profe colocou-se no lugar dela, sentiu e sofreu a dor dela. Compreendeu. Com o encaminhamento, ela saiu mais tranqüila e eu também, com a escuta e aprendizado que fizera, sentindo-me mais humana e agradecida.
Durante a conversa, lembrei muito da Maria, minha neta. De quando ela me chama: “vem uouó Isa! "Xenta" qui, chão”; sinalizando, batendo, com a mãozinha, no lugar onde devo sentar, ao seu lado. Aí sento e então conversamos, rimos, cantamos; conto história, brincamos de casinha e lanchamos... Ela me convoca para isto e eu fico feliz por estar ali, por poder partilhar. Por ser um lugar seguro para ela e ela ser uma alegria ímpar para mim! 
Sentar junto, conversar... , escutar e falar... Assim temos uma possibilidade rica de aprender e ensinar; de encontrar soluções, respostas, caminhos, consenso, de forma pacífica e mais justa. Construir respeito, cumplicidade. Estabelecer e aprofundar laços de afeto. Humanizar.  

Reflexos

Observo e convivo, todos os dias, com crianças  e gatinhos. Crianças e animais extraem o verdadeiro de nós. Perto deles não conseguimos ser aquilo que não somos. São tão verdadeiros e espontâneos, que exigem\motivam a recíproca. Por isto é tão bom tê-los sempre por perto. Nos ajudam a refletir, observar, contemplar, amadurecer, crescer; ser melhor... se não fugirmos deles! Triste quando os adultos não suportam a espontaneidade das crianças, não respeitam o seu sentimento e passam a ensinar a hipocrisia, a barganha, a dissimulação, o “tirar vantagem”... Uma sociedade que tem corruptos é porque criou, alimentou, estimulou os corruptos. Houve quem os educasse para isto. Ninguém nasce ou se torna do dia para a noite, um corrupto. Alguém estimulou, deu exemplo, ajudou a forjar a alma e o pensamento daquele que rouba, engana, mente, quer tirar vantagem de tudo; dar “um jeitinho”; escapar dos deveres, das obrigações, das leis e sutilmente fazer com que outro faça; trabalhe por ele. Eu vejo, de um lado com grande satisfação, a justiça acontecendo, no país, em relação aos corruptos denunciados, presos, condenados. De outro, com pesar. Pesar porque eu creio que não é a prisão que vai livrar o país dos corruptos. Se eles fossem um “caso isolado”, tudo bem. Frutas podres, a gente separa e joga fora. Melhor ainda, aproveita para fazer compostagem, adubar o solo: transformando em coisa boa. No caso, as prisões, para onde vão os “bandidos”, os infratores todos, são, na verdade, verdadeiras escolas de degeneração e não de regeneração; devolvendo tudo que recebem em pior estado, sem transformação alguma. Vejo, ouço, leio tanto sobre este assunto, todos os dias... Me preocupo seriamente. Por vezes esqueço, deixo pra lá, dizendo a mim mesma que faço minha parte como mãe e professora, tentando educar para uma cidadania consciente e solidária; mas, por vezes, desanimo, perco a esperança; acho-me impotente e não vejo saída para isto, que está “entranhado” nos sujeitos muito mais profundamente do que a gente pensa.  O egoísmo e a corrupção estão dentro de nós, mobilizados a todo instante, por demandas internas e externas no contato com o outro, com o mundo e com os desafios cotidianos do mundo. Deixar-se tomar, levar; entregar-se ao egoísmo, à corrupção é outra história. Vai depender da educação, dos princípios de cada um. Vai depender do adulto, da sociedade que cria, orienta, ensina, educa, dá exemplo. Dos valores. Ao que parece, o valor que aparece, que é priorizado e considerado como valor essencial, na nossa sociedade, por uma grande maioria, é o poder e o dinheiro que ele oportuniza e com o qual é possível comprar, consumir, acumular e se sobrepor ao outro. Por isto, a importância das crianças e também dos animais. Pura essência e instinto, ali! Para ser reconhecido e trabalhado! Melhor ouvir de uma criança: “chata, feia, etc...”, verdadeiro para ela; do que de um adulto: “querida, linda...” pura hipocrisia ou manipulação de alguém que, “nas costas”, já vai desmentindo, falando mal, criticando e, se possível, tirando seu tapete, destruindo, descartando quando não tiver mais utilidade. Nós somos assim: muito feios. Mas podemos nos embelezar! Podemos reaprender com as crianças, educando as crianças e nos reeducando. Animais também ensinam.
Estávamos passeando com minha filha e minha neta, quando encontramos com uns amigos, na praia. Resolvemos parar ali com eles, um pouco, para conversar. Como não estava planejada esta parada, não tínhamos, junto, os brinquedos de praia da Maria. Claro que ela viu um menino, no guarda-sol ao lado, cheio de brinquedinhos e foi até ele, feliz da vida, “de olho” nos  brinquedos! O menino, maior que ela, a acolheu, abraçou e beijou; mas ficou resistente em emprestar, dividir baldinhos, pás, etc. Eu pensei que o melhor seria sair dali, evitar o confronto; até porque os adultos que acompanhavam o menino, pais e avós, exceto a mãe; não esboçaram interesse e nem sorrisos para com a aproximação da Maria. Mas resolvi investir no nosso potencial de tolerância, de aprendizado e comecei a conversar e junto com a mãe do menino, fomos fazendo a mediação entre as crianças. Aos poucos, o pai também começou a estimular a troca e o avô,  buscar água no mar. As crianças brincaram bonito e nós, adultos, aprendemos que com um pouco de boa vontade, podemos bem mais do que pensamos  e que não é assim tão difícil partilhar e, que por alguns momentos, o “meu” pode ser “nosso” e que isto pode ser tão bom e acontecer de forma respeitosa! Claro que pretendemos cuidar e não ir à praia, com a Maria,  sem os seus brinquedos, para não abusar do outro e para que a partilha possa ser mais significativa: nem só dar, nem só receber; mas interagir e trocar.

Suscetibilidade

Texturas e doçuras
se escondem
na tarde luminosa,
suscetíveis ao olhar curioso
que vê,
à mãozinha sensível
que toca
descobre
e se encanta!
A cantoria do mar
espalha melancolia
e os morros
abraçam mais forte.
Edifícios estendem
sombras na praia
mas o sol, 
soberano nas alturas,
segue...
rabiscando suavidades
no azul!
E a brisa vai com ele,
sussurrando frescores
e peripécias!
Maria Margot

Ventos

Ventos, ventos!
Suaves  e fortes
levam as folhas
balançam os galhos
acarinham minha pele.
Não me trazem novidade
mas, lembranças, preocupações
produzindo emoção e arrepios...
Ao mesmo tempo me dizem
para aquietar o coração.
Porque o que está muito perto
um dia vai para longe
o que está longe,
um dia volta.
Isto não tem remédio.
E o vento curativa
o que dói no momento.
Ele assopra, acarinha...
cuida as feridas;
escuta e acolhe,
escuta e abraça.
Respeita. Guarda com ele.
Limpa, faz circular, desacomoda.
Impele olhar de outro jeito,
ver  de outras formas.
Por vezes, arrasa e destrói.
Certas coisas,
só mesmo destruindo.
Ele sacode minha saudade
minha preguiça.
Sacode meu medo.
E cativa para outros ares
outros lugares.
Sem “ontens” e amanhãs.
Tarde de primavera!
Meu mundo dentro
de tantos mundos...
Ventos! Ventos!
Me levem!
Me virem, desvirem
desfaçam e refaçam.
Dissolvam-me entre
cores e perfumes
nesta carícia
tão mais real
do que as nuvens escuras
dentro de mim.




Faxina

     O dia da faxina é sagrado. Mulheres aprendem isto bem cedo, com as mães, avós, outras mulheres. Maria, tão pequenina, já aprendeu também, pega um paninho e vai limpando, imitando a mãe, a vó... Uma casa precisa de faxina. Minha mãe fazia e, ainda faz, faxina todos os dias. Eu só consigo fazer aos sábados. É o tempo que eu tenho. E tenho lamentado, porque gostaria de usar este tempo de outra forma. Mas uma casa precisa de faxina. Tentei ter uma faxineira. Várias vezes. Não deu certo. Minha casa é muito grande, com muita escada e muito vidro. Isto assusta e elas não voltam. E tenho um agravante: nenhum de nós, em casa, gosta, fica à vontade com uma pessoa estranha dentro. Descobrimos, recentemente, que  muito lá no fundo, escondidinho, ficamos, cada um no seu silêncio, torcendo para que elas não venham mesmo. E quando não vêm, o alívio é sempre maior do que a decepção. Então, o jeito é pôr a “mão na massa” e faxinar, do jeito que é possível, a cada sábado que amanhece. 
     E o que faz a outra parte de mim, enquanto o corpo faxina, corre, abaixa, levanta, varre, molha, seca, esfrega, torce, escova, lustra, tira pó, dobra, passa, sacode, estende... ? Porque eu, eu não consigo ficar “inteira” na faxina! Minha cabeça e meu coração são rebeldes e nunca entram em consenso com estas atividades mecânicas, repetitivas e, praticamente inúteis, porque a gente limpa para sujar. Limpa outra vez para sujar outra vez... A outra parte de mim, viaja, pensa, reflete, medita. Conversa, discursa. Atualiza e “acerta contas” com “deus e o mundo”! Também chora e briga, de raiva, de tantas saudades e de impotência. Prepara aulas e imagina, sonha e cria! 
     Ontem, na faxina mais recente, descobri que isto também é faxina! Faxina interna. Vou limpando fora e arejando dentro; revirando meus  conteúdos. Descobri que ao contrário do que eu pensava, durante a faxina estou e sempre estive mais “inteira” do que pudesse imaginar; faxinando por dentro e por fora! Me dei conta disto quando falei para o meu filho que “um dia destes, quando tiver um tempo maior, de férias, vou separar e jogar, um monte de coisas inúteis, espalhadas e entulhadas pela casa toda, fora”! Imediatamente veio um eco repetindo, lá do mais fundo de mim: “dentro também! Há uma porção de inutilidades, velharias, “cacos” nos quais estou apegada e que não servem para nada, a não ser para ocupar espaço, dar trabalho; que eu fico limpando, quando devia estar jogando fora”.                   Acredito que daqui para frente, estes dias de faxina serão mais tranqüilos; porque finalmente compreendi que faxina é algo absolutamente pessoal e intransferível, ninguém pode fazer, mesmo, pela gente, por mim. Uma vez na semana é o mínimo, para ter mais leveza e bem estar. Certa está minha mãe, faxinando todos os dias! Pena que ela ainda, com tantos anos “na lida”, ainda não tenha “atentado”  e aproveitado para fazer a limpeza interna. Espero que eu consiga, agora que “atinei” e que as mulheres que vêm depois de mim, minha filha e minha neta, aprendam ainda mais cedo do que eu a transformar trabalho em liberdade.

Cheiro de terra


O cheiro da terra!
O perfume da terra
exalando das
suas entranhas
espalhando-se pelo ar!
Perfume de amor!
Amor da terra
e da chuva!
A terra tinha sede
a chuva tinha saudade.
O perfume
me fala deste amor
que aprofunda ali,
na mata.
Protegido pela mata.
Pelas folhas que
retém a água e
prolongam o encontro
de amor, que de tão feliz
produz este cheiro
doce e forte
que nos toca
emociona
exalta os sentidos.
Cheiro de amor!
A terra canta o seu amor
na tarde chuvosa.
O sol não brilha fora
o sol brilha dentro.
A natureza acolhe e vibra
silenciosa.
A terra fortalece.
O perfume é seu
presente
porque não sabe
ser feliz sem partilhar.

Inutilidade


A pior sensação
é a da inutilidade
das horas;
do tempo gasto com nada,
do sono perdido
com o que está fora.
Com o que se perdeu
de substância
entre superfícies ocas
quando poderia ter voado.
Ou, produzido.

O meu ofício

          
       
       Celebr0, hoje, o meu ofício. Estou na escola há 48 anos. Entrei com 7 e ainda estou aqui. Há 34 anos,  além de aluna, sou professora. Os primeiros 14 anos no exercício da profissão, foram os anos da juventude! Tempo das greves, da luta, dos ideais lançados, gritados ao mundo; das broncas, dos questionamentos, dos enamoramentos com ideais políticos e teorias sobre educação. Dois encontros decisivos nesta época: Paulo Freire e a Psicogênese da Escrita. Porém, os últimos 20 anos, no QM, foram os anos da maturidade; reflexão e da paciência cultivada e construída. A escola sempre foi lugar especial para mim. Aprendi, reaprendi e fortaleci tudo sobre a vida, tudo que é essencial. Especialmente sobre respeito e amor ao universo todo, suas criaturas e sobre ser cidadã e educar cidadãos.  A escola trouxe a escrita e os livros para minha vida. E até hoje são partes essenciais dela. Aprendi muito mais do que ensinei. Não sonhei ser professora. Sonhei ser mãe e jornalista e feliz. As coisas não foram, todas, do jeito sonhado, mas como puderam ser. E eu permaneci na escola. Numa estrada florida, cheia de desafios, encantos e possibilidades,  encontrei com o magistério. Foi um encontro e uma troca muito especial! O  melhor de mim foi para este ofício, educar: os meus e os filhos dos outros. E este meu ofício me tornou uma pessoa melhor, para mim e para o mundo. E eu sou uma mãe e uma professora feliz, que todos os dias, aprende e compreende um pouco mais sobre o ser e o estar neste lugar! Por isto, no silêncio preenchido (por tantos sons, histórias e tesouros de afetos, encontros e aprendizados) do meu coração; homenageada com o perfume da minha primavera (cada dia mais linda), hoje eu comemoro e celebro, com minha alma e e minhas lembranças,  o dia do professor!

Moranguinho, peixe e sol radiante




          Vagarosamente o dia vestiu-se de muita beleza! Cedo, houve um movimento inusitado na floresta ao redor; agitação, cantoria. Maria também chegou cedinho, para passar o dia. Chegou rindo, olhos brilhando. Na medida que conhece e explora o contexto, descobre coisas interessantes.  Agora descobriu o lago. Gosta de ver os peixes; de alimentá-los com a ração, que pega do potinho, organizado pelo vovô e joga na água. 
Os peixes, atraídos pelo cheiro da ração, chegam à superfície, de todos os tamanhos e até mesmo os coloridos, que não se vê de outro modo. Ela fica exultante! Depois de alimentá-los, gosta que o vovô, usando o mesmo potinho, pegue  alguns peixinhos do lago. Ela segura, então, o pote nas mãozinhas, olha e vira. Adora ver a água cair, respingar e os peixinhos sumirem, novamente, no lago...
E solicita e repete e repete o mesmo movimento, sem cansar.  Cansam o vovô e a vovó, mas ela, não! 

          Na ponte, agora, temos potes com moranguinhos! O que é isto? Estas coisinhas que vão ficando vermelhinhas e se escondem atrás das folhas verdes? Então, Maria reveza.
Vai à ponte, colher os moranguinhos. Coisa fofa! A vovó vai ensinando que só pode pegar aqueles bem madurinhos, bem vermelhinhos. Ela entende. Muitas vezes precisa de ajuda, pois o talinho é firme.
O problema é que quer jogar os  moranguinhos para os peixes, também! Precisa aprender que são para ela, vovó e o vovô comer... mas isto faz parte de um aprendizado longo. A vida vai se apresentando a ela tão rica, tão convocativa... que precisa de um tempo para aprender e processar cada coisa, sua função, seu valor, cuidados... Tão bom vê-la aprender, descobrir! Tão essencialmente bom  reaprender, redescobrir através dos olhinhos dela! Agora temos um tipo de paciência e olhar, que na juventude não tínhamos. Acho que esta é a beleza e a surpresa que o envelhecer nos reserva. Houve, um momento, especial, na manhã dourada, de sol radiante, quando a pequena, espontânea e amorosa, já cansadinha, "escoradinha" na vovó e no vovô, diante do lago, deu um beijinho no vovô e disse “bigado”; deixando-nos totalmente sem ação e profundamente emocionados! Há presente e afago ao coração melhor do que este?

Eu te amo!

                                                                                                                                                                                                                                                                   
Percebo, sem disfarçar meu encanto, a facilidade com que os jovens dizem: “eu te amo”! Se eles gostam de alguém, lá vai o “eu te amo” com a maior espontaneidade. Vejo estas declarações nas redes sociais e nas interlocuções, nos encontros cotidianos, não importando, gênero, número, nem o grau da relação. Acho lindo, arrojado, corajoso este assumir o sentimento, dentro e fora. Fantástico esta palavra saindo como numa pauta, cheia de sons, cores, harmonia e beleza. Constato que todos sabem exatamente o que significa “eu te amo” em cada relação. Para mim, o “eu te amo” ficou enquadrado na categoria das coisas especiais, quase que sagradas; num pedestal, num altar, distante; que se acessa poucas vezes, com muito merecimento e que se diz para pouquíssimos, aqueles seres também raros que entram na vida da gente por felicidade suprema! O “eu te amo” ficou para mim como a roupa domingueira, de “antigamente”; que não se usava todos os dias, só em ocasiões especiais; festas e passeios dominicais e que se cuidava com extremoso carinho, para não estragar, não sujar; para poupar e durar. E desejei dizer tantos “eu te amo”! Tantos! Tantos! E não disse por temer que fossem passageiros (e o amor, para mim, teve sempre esta conotação de “para sempre”) ou que pudesse banalizá-lo, ou que fosse não fosse lícito ou que pudesse causar constrangimento e o pior, rejeição. Lamento ter crescido num contexto contido, cheio de “senões”, preconceitos que conflituam, até hoje, com minha alma, meus sentimentos, que querem expressar amor a todo momento. E, mais ainda, por não ter conseguido libertar-me destas amarras que internalizaram o meu verbo. Meu ser rejubila quando ouço um “eu te amo”, independente de quem o diga e para quem diga! Importa dizer, importa ouvir e perceber as conseqüências que este mantra provoca em quem diz e em quem ouve. Importa o momento. Esperar uma vida inteira para dizer ou ouvir um “eu te amo” que se encaixe nas expectativas mais acalentadas, não sei se vale a pena. Mas quanta diferença produz ou provoca dizê-lo todos os dias, com todas as letras! Mesmo que seja apenas do momento... não é feita de momentos a vida? Assim como para alguns, como para mim, ficou difícil pronunciar; para outros, talvez fácil demais e por isto, a expressão tenha se desgastado, generalizado, perdido o encanto. Dizem e, parece mesmo, que tudo que generaliza, perde a importância; tudo que é fácil não é valorizado. Eu não sei mais. O que sei, agora, é que tudo pode ser relativizado. Que as pessoas são singulares; cada uma tem um jeito de sentir, interpretar e expressar. O amor, sendo vital, deve ser expressado, dito, sem reservas, medo ou censura. Eu disse e digo “eu te amo” de infinitos jeitos para todos que amei e amo. Mas não sei se fui, se sou entendida. Muitas vezes escrevi linhas e páginas; fiz isto e mais aquilo; quando o que queria dizer era somente “eu te amo”. Hoje, acordo feliz! Vejo minha palavra tardia nascendo, saindo de minha boca com maciez e gostosura!  Liberta, se deleita e acompanha a partitura extraordinária da manhã, exibida repetidamente pela passarada ao meu redor e vai aos  quatro cantos do meu mundo, se mostrando, como o sol que nasce e doura lentamente os morros, as copas das árvores... até tocar o cantinho mais escondido da floresta. Eu te amo!


Minha foto
2023, 14o aniversário do Blog! O meu desejo, por estes tempos, é de um pouco de calma, um pouco de paciência, um pouco de doçura, de maciez, por favor! Deixar chover, dentro! Regar a alma, o coração, as proximidades, os laços, os afetos, a ternura! Um pouco de silêncio, por favor! Para prestar atenção, relaxar o corpo, afrouxar os braços para que eles se moldem num abraço!

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