Releitura: O bom samaritano


O dia que nasce sempre traz novidades! Às vezes gritantes, às vezes silenciosas e sutis. As tragédias, obviamente, paralisam e nos põem pensar. As pequenas delicadezas, gestos inusitados, atitudes espontâneas e generosas também nos deixam sem fala. Também nos põem pensar. Por estes dias, encontrei com uma destas: 
Há uma mulher, uma destas “extraordinárias” anônimas que, costumeiramente, às tardes, vai ao hospital; mais especificamente à ala pediátrica, levar fraldas que arrecadou, em campanhas ininterruptas, para as crianças desprivilegiadas. Mas não só levar. Ela troca fraldas,  cuida, brinca, conversa, escuta! E não só as crianças. As mães também! E não só escuta! Se disponibiliza para que uma e outra descanse um pouco; tome um banho; vá para casa ver os outros filhos; organizar a vida...
É  pouco? Insignificante?
Talvez para alguns. Mas não para quem sabe (ou consegue se colocar no lugar) como é intenso e exigente estar num hospital com um filho pequeno doente; ainda mais se não se dispõe de alguém para ajudar, revezar e nem sustentar.
Quando a violência, a injustiça, o desrespeito arrebentam, corrompem, dividem, excluem, silenciam, amedrontam, discriminam e envenenam;  ela, com seu trabalho perseverante, generoso e otimista,  curativa, acarinha, ouve, dá voz, encaminha, encoraja, semeia esperança.
“Dar a si” e não somente “de si” é de uma delicadeza, de uma sensibilidade ética que chega doer!
Este “tipo de gente extraordinária”, os “bons samaritanos”, veem o outro além das aparências, das diferenças e rivalidades. E nos recordam nossa humanidade latente e grandiosa de ser... bastante esquecida e "desnaturada" no vaivém dos dias; na alienação das horas, no embrutecimento das relações e no crescimento do medo.


Inscrições rupestres





   - O que será que está "escrito" ali, profe?

Referia-se às inscrições rupestres que investigávamos no Museu Ao Ar livre do Costão do Santinho, Floripa.

O mar sabia, mas eu não. E ele nos contemplava, silencioso, ciumento dos segredos que guardava e, ao mesmo tempo, curioso, olhos brilhantes e desafiadores: eu saberia ler? Intuir? Imaginar?

Tentei. Fechei os olhos e tentei esquecer minha ralidade, minha história, meus aprendizados e buscas. Tentei me concentrar apenas na brisa, no canto de algumas aves navegando o azul solitário  e nas águas do mar espalhando-se no infinito e por entre as rochas e na areia silenciosa da praia... Que significantes tiveram para os nossos ancestrais? O que lhes falaram as tempestades noturnas? As ondas inconstantes? As gigantestas rochas? O interior das matas, seus incontáveis tons? As noites estreladas? O lamento do vento; a cantoria da chuva? O que seus olhos viam e que inquietudes  ardiam em sua alma diante do sol surgindo no horizonte? Da lua espelhada nas águas? Da maré ondulante? Da alternância do frio e do calor? Da impotência diante da dor; da ignorância diante dos sentidos, dos mistérios da vida e da morte?

Um fio de emoção percorreu e unificou meu corpo. Depois, diluí no momento...

Agora, atrevo-me, sim, a dizer o que eu sinto: são inscrições poéticas! Certamente, entre os primitivos, também havia os inquietados, os apaixonados, os doidivanos que ansiavam expressar o que lhes fustigava as entranhas, numa tentativa de inscrever, de traduzir o intraduzível.

Riqueza maravilhosa! Um ponto, uma possibilidade de encontro... como assim é, até hoje, a escrita. Maravilhoso este "interseccionar" singular dentro e fora, passado e presente, a vida e sua grafia! 



Dor no jardim




E nos arrancaram mais uma...
Uma que desabrochava forte, linda!
A lágrima verte,
desliza inquieta, triste, funda...
Acarinha outras ausências
e seus perfumes.
Quem fez isto?
Alguém avesso a jardins,
a flores, alegria, roda, sol,
comunidade, vida!
Alguém ainda sem rosto,
sem palavra, sem sentidos.
Sem sentido, escondido.
Nas sombras.
Mas nós ainda vemos o jardim!
E nós vimos a flor
antes que nos fosse tirada!
Era linda!
E nós ainda vemos as flores,
a singularidade das suas formas,
suas cores e como gostam
de misturar! Reinventar!
Aprimorar! Interagir! 
Garantir espaço e diferenças
no jardim.   
Nós ainda vemos o sol! Redondinho.
Como a nossa Terra,
como as rodas fraternas!
Vemos como ele se dá a todos.
E é para todos!
E ele nos abraça!
Conforta, aquece, fortalece e estimula.
Uma flor foi arrancada!
Pura maldade.
Ah! Estes covardes não sabem!
Uma flor não morre assim!
Muito menos um jardim!
Não sem resistir...
A flor permanecerá,
como outras tantas "extraordinárias",
nas memórias; inscrita
dentro de cada um!
Ali, desabrochará, singular,
em terras ávidas, férteis
que desejam, lutam,
idealizam o justo;
inflando corações com
aquilo que os perversos mais temem:
força, coragem,
ideias, voz, alegria
e mãos dadas!
Nós vamos regar.



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2023, 14o aniversário do Blog! O meu desejo, por estes tempos, é de um pouco de calma, um pouco de paciência, um pouco de doçura, de maciez, por favor! Deixar chover, dentro! Regar a alma, o coração, as proximidades, os laços, os afetos, a ternura! Um pouco de silêncio, por favor! Para prestar atenção, relaxar o corpo, afrouxar os braços para que eles se moldem num abraço!

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