Fazedora de sonhos

O sonho alimenta. Acalma, fortalece. Salva, muitas vezes. É doce, perfumado. Muito quente, queima! Por causa do recheio. Precisa degustar com paciência, delicadeza. Saber saborear é uma arte! Fica melhor ainda com acompanhamentos: um café, chá, chimarrão; uma conversa. Dá trabalho. Exige preparo, atenção, cuidado, precisão e tempo. E o ponto certo.  A um menor descuido, vacilo, o sonho “desanda”, não dá certo. Fica melhor ainda quando sonhado em parceria: eu sonho, tu sonhas, ele sonha... e juntos, nós sonhamos! Sonhar junto é muito bom! Sonho lambuza e gruda e permanece; a gente sempre vai descobrindo uns “restinhos de açúcar” aqui e ali, na boca, na roupa, no chão! É de lamber os dedos e os “beiços”. Faz rir de contentamento, de felicidade infantil; daquelas fundas e espontâneas! Tem gosto de “quero mais”. Na medida certa é o melhor; pois satisfaz, preenche. Em exagero, entucha e provoca mal estar; a realidade fica muito dura. Todos podem comer. A contraindicação parece estar no açúcar da cobertura. Aprendi, ontem com dois diabéticos, que eles podem consumir sonhos, mas sem esta cobertura e com muita moderação. 
A fazedora de sonhos mantém esta arte viva, a de fazer sonhos! Ela guarda os ingredientes na memória, que é fantástica, diga-se de passagem! Não tem preguiça de fazer e nem de ensinar. Faça frio, chuva, calor ou cansaço; segunda ou domingo ou férias. O sonho é maior do que tudo! Ela também aprecia, mas o prazer maior está em fazer, em proporcionar o prazer de comer e de se lambuzar aos outros e de ensinar a quem quiser aprender. Na verdade, poucos têm este interesse de pôr a mão na massa. Muito fácil ir na padaria e comprar sonhos feitos; feitos pela fazedora de sonhos do dono da padaria, que a gente nem conhece e não sabe nosso gosto. Delicioso é ter uma fazedora de sonhos ao lado da gente, nossa! Vê-la em ação, passo a passo, pacienciosa e competente, “tecendo” e misturando com habilidade, os ingredientes visíveis e os sutis que permite que os espectadores acrescentem, ali, na roda da feitura do sonho: palpites, confidências, um riso, uma piada, uma lembrança, uma reclamatória, um choro, uma crítica... que dão ao sonho, um sabor singular, do agrado de cada um e de todos, ao mesmo tempo!
Que os Anjos dos Sonhos protejam e inspirem todos os fazedores de sonhos, especialmente a nossa Silvia! Também proteja e guarde a fazedora de sonhos que há dentro de cada um de nós, para que não deixemos de sonhar! Não esqueçamos dos ingredientes específicos para sonhar nossos sonhos!
Sonhar é bom demais! Duro é aprender a arte de sonhar e consumir sonhos com moderação!






































Casinha

Brincar de casinha! Mamãe, papai e filhinha! Me encanta! Impressionante ficar observando como as crianças gostam e se articulam e organizam para brincar; como distribuem os papéis, quando em grupo. Por vezes acontecem impasses e disputas; mas geralmente concordam e fazem circular os papéis, depois de definidos. E ali, na casinha, reproduzem suas percepções, as falas, atitudes, tons e jeitos dos adultos do seu convívio. Quando a gente se reconhece em algumas delas, descobre como a criança “nos lê”, interpreta; o que sinaliza muitas coisas e nos oportuniza reflexão e mudança. Fiquei surpresa quando vi minha neta brincando de “mamãe”, tão pequenina! Ninando, alimentando suas bonecas; conversando com elas amorosamente; fazendo coisas na casa, "imitando" ações das mulheres do seu convívio. Não se trata somente de uma pura e simples imitação do universo adulto; mas também de uma identificação com o mundo feminino.
O vovô construiu uma casinha num espaço singular, protegendo uma árvore que passa pelo meio da varandinha. Os objetos foram aparecendo e compondo o ambiente; presentinhos da vovó, dos dindos, do papai e da mamãe, dos tios e de alguns amigos. Algumas coisas recicladas. Uma festa para Maria! Tapetinho na porta. Varalzinho na varanda. Prateleirinhas, mesa e cadeirinhas. E as filhinhas! E  a lidança começa...
Hora de recolher a roupa, no varal... “E agora... "(ela repete quando quer sinalizar que vai mudar de foco)...
Hora de passar e dobrar. "E agora..."

Hora de cortar os legumes e preparar a sopa... "E agora..."
Hora de dar sopa às filhinhas: “Mari e Sorvetinha”... "E agora..."

Hora de pegar o baton da vovó.... "E agora..."  
Hora de receber visitas...
E conversa e risos!
Assim como acontece com as outras crianças, Maria vivencia a preciosa "fase do simbólico". Este é o seu mundo do agora. Encantador, rico e grande do ponto de vista do tamanho, da idade. Vai crescer  e enxergar outros “mundos”, outros horizontes, caminhos e possibilidades; outras coisas com as quais irá ou poderá  identificar-se e, que de repente, não  terão nada a ver com este “trinômio” que nos marca e singulariza na raiz: mulher X casa X maternidade. Muitas mulheres já não se ocupam das atividades da casa e muitas abdicam da maternidade em prol de outras coisas. Mas, agora, esta identificação  com estas questões é muito importante para  a descoberta e compreensão de si mesma, do seu gênero e do mundo que a cerca e desafia; para se organizar e situar no seu contexto; para trabalhar e expressar pensamentos e sentimentos; elaborar hipóteses e conceitos. Tão bonito isto! E tão bom: brincar de casinha! 
- "Vamu bincá di cajinha, vovó Isa! Vem... vem...". 
   
                                                                                                       

Aniversário do blog


Venho contando:
agora são cinco!
Um mundo
dentro do meu mundo,
espaço sagrado
dos meus
“não ditos”.
Cúmplice
das insônias
e das sutilezas
intraduzíveis.
intérprete
do meu olhar
e do meu coração.
Obrigada.

Natal


Em volta de uma criança, que é inocência; que é inspiração de ternura, amor, tolerância, nos quedamos emudecidos, contemplativos, emocionados e cheios de expectativas, de alegrias inexplicáveis. Uma criança agrega. Diante dela nos desvestimos e aparecemos como somos; conectamos com o que temos de melhor, de mais bonito e verdadeiro dentro de nós e do outro e assim temos a chance de escolher: seguir como somos e estamos ou... mudar! Diante de uma criança nos “apequenamos”, descendo do salto, dos cargos e títulos; sentamos no chão e se quisermos, nos tornamos grandes na humildade, na simplicidade, na ética e na solidariedade. Pastores, reis e sábios, um dia, num estábulo, quedaram assim, diante de um menino recém nascido, um pequenino que era GRANDE! A criança externa está sempre nos lembrando da nossa essência e, assim, como ela, nossa essência demanda cuidados, atenção, acolhimento, espaço, escuta e respeito.

Desapego

A mãe entrou na sala onde eu estava, apreensiva. Uma jovem mãe. Estava preocupada porque sua filhinha, de 1 ano e 7 meses, iria fazer seu primeiro passeio de topic com os colegas de escola. Um passeio curtinho; mas o primeiro da pequena sem a presença do pai e da mãe ou de um dos avós, que comumente ajudam, na lidança com ela, no cotidiano. Observei o quanto ela era bela e o quanto mais bela era nesta condição de mãe, esquecida de si e focada na filha! Os olhos brilhavam numa mistura de inquietude, orgulho, insegurança e expectativa que singulariza, aproxima e unifica todas as mães do mundo diante do  filho, a partir do momento em que ele descobre e avança no mundo, desligando-se dela e começa caminhar com suas próprias pernas, rumo a um desconhecido, rival e apaixonante! Ela queria e autorizara que a filha fosse ao passeio; mas temia que fosse. Temia o que todas nós, tememos: o inusitado desconhecido e nossa impotência diante do seu humor instável e planos. Ela pediu-me, olhos suplicantes e brilhantes:
- “Olha pra mim! Veja se ela senta direitinho na cadeirinha; se o cinto está bem  colocado... se ela tomou água e se está tudo bem, antes da topic sair...”.
Eu via a fragilidade e a força, ali juntas: a mãe titubeante, oscilando entre a mãe que teme e a mãe que encaminha; a mãe que entrega e a mãe que prende....  a mãe insegura e a mãe confiante. Desejei abraçá-la para confortar e garantir, plenamente, que tudo sairia bem. Tenho desejado, inúmeras vezes nesta vida, este poder de garantir, além de desejar. Mas não tenho. Aquela mãe querida não era somente uma mãe de aluno. Era minha filha. E cada um destes meus papéis, ali: professora, mãe e avó ficaram muito distintos e em nenhum deles eu estava confortável; no momento. Mas eu precisava dar uma resposta. E ali, naquele contexto, respondi como professora, como profissional que sou e que acredita no seu trabalho: que tudo estava bem organizado, ficasse tranquila. E estava e, como sempre,  correu tudo bem! E amadurecemos mais um pouco, as  três: eu, a vó; ela, a mãe e a pequena, que se encanta cada vez mais  com o mundo e nos convoca a tantas perguntas e respostas, desafios, aprendizados e redescobertas.

Senta aqui, vovó!

         



Ela esperava por mim. Uma senhora desconhecida, tímida, um pouco ansiosa. Enquanto me estendia a mão, também entregava um bilhete. Nele, uma ex-colega apresentava esta senhora e solicitava que eu a escutasse. Fiquei um pouco tensa, tentando adivinhar o que ela queria, o que esperava de mim. Sentamos para conversar...
Ela era mãe. Também era empregada doméstica, analfabeta; sozinha, com uma porção de filhos para criar. Estava pedindo socorro, desesperada com a situação de um destes filhos, pequeno ainda, que não se ajusta mais à escola, às regras, às leis; agressivo e com grande dificuldade para o aprendizado; “ainda não sabe ler e não tem vontade de aprender, de fazer tarefas escolares...” . Uma mãe dedicada, que via o filho sofrer e produzir desconforto aos outros, desajustado.  Ela buscava uma ajuda, uma palavra, um horizonte, sedenta: “professora, eu faço qualquer coisa para ajudar meu filho! O que a senhora disser para eu fazer, para onde ir, onde buscar... eu faço, eu vou... Não sei ler, mas eu vou perguntando aqui e ali... eu acho, eu chego lá...!” Estar ali, segundo ela, era o último lugar, última esperança... Contou-me que espera, a cada dia, que este filho seja chamado, inscrito que está, num destes programas municipais de atendimento especializado infância; preocupada, porque sabe e sente que o menino precisa de ajuda urgente, imediata e ela não vem (realidade triste da saúde e da educação no nosso país)... Eu tive vontade de dizer a ela que eu tinha escuta, mas não tinha o poder do milagre! Mas calei e ouvi, ouvi, ouvi... tanta coisa triste e também tanta coisa bonita de superação e luta... Eu tinha que manter a esperança, não só a dela; a minha também. Ela chorou e eu também, por dentro, porque por fora, eu estava “só ouvidos”. Esta escuta e um encaminhamento para contatar a pessoa  certa para a ajuda concreta, foi o que eu pude (tão pouco) dar a ela naquele momento. Minha alma de cidadã, de mãe, de avó e de profe colocou-se no lugar dela, sentiu e sofreu a dor dela. Compreendeu. Com o encaminhamento, ela saiu mais tranqüila e eu também, com a escuta e aprendizado que fizera, sentindo-me mais humana e agradecida.
Durante a conversa, lembrei muito da Maria, minha neta. De quando ela me chama: “vem uouó Isa! "Xenta" qui, chão”; sinalizando, batendo, com a mãozinha, no lugar onde devo sentar, ao seu lado. Aí sento e então conversamos, rimos, cantamos; conto história, brincamos de casinha e lanchamos... Ela me convoca para isto e eu fico feliz por estar ali, por poder partilhar. Por ser um lugar seguro para ela e ela ser uma alegria ímpar para mim! 
Sentar junto, conversar... , escutar e falar... Assim temos uma possibilidade rica de aprender e ensinar; de encontrar soluções, respostas, caminhos, consenso, de forma pacífica e mais justa. Construir respeito, cumplicidade. Estabelecer e aprofundar laços de afeto. Humanizar.  


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2023, 14o aniversário do Blog! O meu desejo, por estes tempos, é de um pouco de calma, um pouco de paciência, um pouco de doçura, de maciez, por favor! Deixar chover, dentro! Regar a alma, o coração, as proximidades, os laços, os afetos, a ternura! Um pouco de silêncio, por favor! Para prestar atenção, relaxar o corpo, afrouxar os braços para que eles se moldem num abraço!

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