Poças d'água

       


      Eu saía da Biblioteca e contemplava a chuvinha mansa que embalava a manhã desde que esta acordara e produzia várias poças d’água no quintal solitário, saudoso da energia e movimento das crianças. Então eu o avistei...
        O pequeno, de uns 4, 5 anos, desceu a rampa que conduz ao quintal e, cautelosamente, cuidando para não ser visto, aventurou-se, primeiro, caminhando sob as goteiras que caíam das telhas e depois, seguro de que ninguém o observava, deu os primeiros passos pela areia, sentindo e curtindo a chuvinha no rosto, feliz.
        Bom, eu não podia deixá-lo molhar-se... e muito calmamente, para não assustá-lo, pois não me vira:
        - Oi! Querido! Precisa de ajuda?
        - “Ah! Só quero ir lá na pia lavar esta coisa”... – e mostrou-me um objeto, visivelmente contrariado com a minha aparição; mas tranquilo.
        - Eu te ajudo! Vamos voltar pela rampa e descer pelo lado coberto. Está chovendo... – chamei.
        - “Ah! Eu nem vi que estava chovendo”! – justificou. “Quando olhei pra fora, só vi que estava nublado...” – complementou, sem graça; murchinho...
        Eu o acompanhei, mas dispensou minha ajuda para lavar o objeto e nos despedimos.
        Mesmo sabendo que agira certo, naquele contexto, fiquei com a imagem desolada do menino, na cabeça. E depois, caminhando na chuva, pisando nas poças d’água, até minha casa, continuei refletindo; o desejo do menino misturado com o meu: deliciar-se na chuva, pisotear as poças d’água!
        Coisa que eu sempre amei! Quando criança, esperava com ansiedade os dias de chuva para colocar as “galochas”, a capa de chuva, pegar minha sombrinha e ir para a escola, pelas ruas de Ijuí, cheias de “sobe e desce”. Naquele tempo, podia ir a pé e sozinha para a escola. Era muito prazerosa esta caminhada acompanhando as águas que escoavam pelas sarjetas... Eu apreciava estar sozinha, nestes momentos; contatava com uma emoção ímpar que depois motivava uma escrita, como até hoje.
        Por isto, entendi o que se passava com o menino; seu  desejo de experimentar a chuva, pisar na poças e estar sozinho nesta aventura...
        Refleti o quão está triste a infância, hoje, sem esta possibilidade de explorar; de viver experiências de contato mais próximo com as coisas da natureza, tão simples, mas tão fortes... e de que a minha infância esteva plena! Mas concluí que isto não está impossibilitado! Depende de nos organizarmos e oportunizar estas vivências! Isto exige certa desacomodação, alguns desapegos adultos, mas nada que não possa ser transformado em momentos de grande interação e alegria entre nós e os pequenos!

        Ah! Fiquei cheia de ideias!!!! Vamos preparar botas, capas, sobrinhas, guarda-chuvas e fazer passeios sob a chuva; poças d’água? Experimentar esta magia? Trazer à tona esta alegria ímpar?!!! 

Tchau, Rochinha!

A revoada dos pombos
foi linda!
De lá para cá,
de cá para lá
aquecendo o corpo,
organizando a rota
até sumirem no
céu chuvisquento,
esvoaçantes e felizes!
Entre eles,
o amigo Rochinha,
levemente atônito
com este estado
de inusitada liberdade e
infinitas possibilidades!
Maravilhado com suas asas!
Descobrindo um novo jeito
de dirigir, passear;
ensaiando voos,
rodopios, movimentos
ao som das melodias
de tantos bailes,
tantos solos,
tantos momentos
acordando na memória...
E... lá se foi ele!
Sorriso maroto,
olhar atento,
brilhante de curiosidade,
leveza e graça;
sua característica,
por este céu sem fim,
decidido e feliz!
Deixou um rastro de alegria
para acarinhar
o silêncio espichado,
comprido de saudade
que fica no coração da gente...
Voa em paz
querido amigo!
Obrigada por sua amizade!
Imagino os reencontros...
O "tanto de contentes"
te aguardando lá em cima...
Até...

Véia no volante

       

              Voltava do mercado. Anoitecia mas a rua, contornos e buracos ainda eram bem visíveis. Estava muito cansada; mal suportando o tempo de chegar em casa, guardar tudo e, finalmente, descansar...  Observei, que, à frente, à esquerda, duas senhoras seguiam a passos lentos, descansadamente... Perto da esquina onde eu deveria dobrar, passei por elas e, surpresa, ouvi:
        - “Nossa! Uma véia dirigindo”...
        - “É! E não é que ela dirige bem”?!!!
        Claro! Não havia dúvida nenhuma a respeito da destinatária  daqueles elogios eloquentes! Fiquei chateada, sim. Fiquei! Quando olhei para elas; vi que eram tão velhas como eu e me dirigiam risos debochados. Não gostei do deboche. Não me fez bem. Eu  poderia rir com elas, se não fosse o deboche: que mal tem uma velha dirigindo bem?!!!  
        Refleti, depois, como sempre faço quando algo externo “me pega”. Se eu não quisesse ser chamada de “véia”, deveria pintar os cabelos; fazer plástica. Concluí que o meu ”chateamento” não vinha da palavra “véia”, porque estou, de fato, velha (claro que não “tãããooo velha”, ainda!!!!); adoro meus cabelos brancos; assumidos porque não suportava aquele ritual mensal de ir ao salão, “fazer a raiz” e porque gosto desta fase e do que ela me proporciona: ser avó e ter mais paciência, tolerância para lidar com minhas questões internas e com o outro, qualquer outro.
        O meu “chateamento” vinha do deboche. E do implícito no deboche; nas exclamações e nos risos debochados. Teriam, elas, feito este mesmo comentário se fosse um “véio” que estivesse dirigindo, meu marido, por exemplo? Desejaria tanto dar este crédito a elas! Considerar que o que eu poderia interpretar como “ojeriza”, “menosprezo”, “quizila”, “estranhamento”, “execração”, “malquerença”, “objeção” (para não usar os termos “preconceito” e “desrespeito”, tão “batidos” e, sim, alguns sinônimos) a uma pessoa (eu, no caso) por estar enquadrada em dois quesitos bem sensíveis e visados: velha e mulher; foi apenas uma “ingênua brincadeira”, uma “bobiça” do momento. Queria dar a elas o benefício da dúvida e não fazer um prejulgamento; engrossando esta fila terrível...
        Porém, o deboche é uma grosseria, um insulto. As ressalvas, objeções, banalizações, senões a isto e aquilo e a este ou aquela, por causa da sua condição singular e do momento, são dolorosas e têm graves consequências. Eu não desejo maximizar o ocorrido; tampouco, minimizar. Só pensar. Conversar um pouquinho...
        Tenho ouvido que as pessoas estão fazendo muito “mimimi”, exagerando com questões de bullying, preconceito, etc; e que há um tempo atrás, muitas destas coisas eram consideradas normais; não tinha problema. Não concordo. Sempre teve problema! O que não tinha era espaço e acolhimento para fala e escuta. Quem dá os “apelidos”; faz os comentários, acha e sempre achou “mimimi”. Aquele que ouve, não. Uma vez, numa escola, ouvi alguém chamar a colega de “banana”. Eu intervi imediatamente: “o nome dela não é banana; respeite”!. Mas a própria garota disse: “não faz mal, professora, ele pode me chamar de “banana”, é meu amigo”! Na semana seguinte, procurou-me: “professora, não estou gostando! Todo mundo está me chamando de “banana”; eu não quero, me ajuda”!.... Tive, no início da adolescência, uma professora de Educação Física muito competente e exigente. No jogo de vôlei, ela gritava para mim: “pega a bola, bibelô”! Nunca consegui pegar a bola e nem jogar vôlei.
        Na verdade, nunca podemos prever o que deixará marcas ou não. Por isto, a melhor coisa que temos de conquista, hoje, neste sentido, é poder falar sobre isto! Dizer ao outro como nos sentimos a respeito. Isto é bom para ele, também! Se, naquela época, eu tivesse feito uma queixa aos meus pais, provavelmente eles diriam que eu deveria me esforçar mais; que a professora estava certa. Mas eu não me atreveria a fazer isto: imagine, questionar a atitude, a fala de um adulto, um professor! Depois de adulta, fiz muita piada com isto, para disfarçar; mas de verdade, foi sério e me paralisou para o vôlei; até mesmo nas brincadeiras fora da escola.  
        A fala e a escuta são das coisas mais importantes que temos. Eu pude falar disto, um dia, na análise e ver o quão fundo tinha ido... E aqueles que não têm escuta? Nem condições de ir numa análise? Muitos disseram e dirão: “mas que coisa boba”, “quanto mimimi”! De fato, o que não nos atinge, parece bobeira.
        Eu e meus irmãos nos chamamos de “mano véio”, “mana véia”! E circula, por aí, uma gíria: “véio” pra cá, “véio” pra lá... São contextos diferentes. Há um consenso. Um lugar. Uma cumplicidade. Diferente dos outros contextos e da intenção de menosprezar, diminuir, ferir. Por isto, importante falar, conversar, refletir. Não banalizar; não tornar “lugar comum”.
        Parece que são as pequenas coisas do cotidiano que vão sendo repetidas, repassadas, inadvertidamente, sem reflexão, atualização; por ignorância ou só por “brincadeirinha”; as que vão cristalizando dentro de nós e nos impedem viver em paz, reconhecendo o direito, a forma, o lugar, o sentimento, a vontade, a vez e a voz do outro, qualquer outro.

        Doloroso constatar esta falta de percepção de si e do contexto; esta falta de empatia e tolerância. Eu penso que podemos, sim, avançar e deixar de lado os “mimimis”; que pra mim, são as justificativas dos indelicados, grosseiros e narcisistas e não as queixas daqueles que se sentem desrespeitados. Podemos amadurecer e deixar a infantilidade de lado; nos reconhecendo e reconhecendo o outro, qualquer outro. Falando e escutando: assim aprenderemos conviver com respeito e leveza. Brincadeira é tudo de bom quando todos se divertem.

Ararinha



Ararinha!
Plena em cor, fragilidades,
beleza,  talentos,
impulso e desejo
de voar sonhos, mistérios
encontros, liberdade...
A vida, esta  exuberante
existência  verdejante,
clama, convoca!
E a ararinha,
(todas as ararinhas)
quer ser,
quer estar...
Solitária e\ou em bando,
aprender  voar!
Espaço, tempo  e respeito,
no trato e no espelho,
para nossas  ararinhas!
Para que  voem!
Elaborem e cumpram
seus planos de voo,
sua rota singular!

O que há?


A vida
infinita na sua diversidade,
produz inquietudes...
O que há
no horizonte
que nos contorna num abraço?
E sob as águas,
este tapete substancioso
que se retorce,
indecifrável,
apaixonante;
encobrindo mundos
dentro de si?
E acima, no céu
que não tem fim...
E o que há em mim
que se reconhece
neste existir repetitivo e desconhecido
de silêncios,
falas, convites,
suspiros, possibilidades

e intensidades?

Aqui

Cheguei.
Ou acordei?
Não importa.
Estou aqui.
Estou bem.
Outra!
Agradecida.
Acrescida.
Que o dia aconteça!

1o dia!

         



         Todos os dias de aula são especiais! Mas o primeiro dia... este sempre é super!
        - “Entrar com o pé direito na escola, né vovó”?!!
        - Claro, meu amor! Com o pé direito!
        - “Para dar tudo certo, né”?
        - Hã...hã!
      Ah! A gente não pode garantir, sei. Mas pode desejar, esperançar, motivar e sonhar junto... Tão bom!!!
        E lá “se foi” a pequena... coração saltitando, olhos brilhantes, cheios de expectativas... Já para o 3º ano! Já... Ô “tempo” disposto, que não dá nenhuma folguinha...

Verderança




“Verde, que te quero”
limpo,
fértil,
protegido,
preservado!
Abraçado pelos azuis
e olhares cúmplices!
“Verde, que te quero” assim,
verde, verdinho, verdoso,
esperançoso
no meu dia útil;
no meu olhar aflito,
na minha espera sem limite .

Vó Ica






            Minha mãe foi, merecida e gentilmente, muito lembrada e homenageada pelos 83 anos completos hoje, dia 8 de Fevereiro! Eu, bem pertinho dos 62 anos, estou muito agradecida por este privilégio de partilhar tempo e espaço, no universo feminino, com ela e outras duas mulheres: minha filha, com 39 e minha neta, com 7 anos. Gosto de observar como somos, nesta linha do tempo e da continuidade da vida, tão semelhantes e tão singulares ao mesmo tempo. A passagem pelas fases, as oportunidades de estudo, trabalho escolhas em geral e posicionamentos... tão diferentes! Maria Margot, a pequena, nem tem ideia do quão dura foi a infância e a juventude da bisa Ica; que entre outras coisas, não teve boneca (só as de milho verde), nem tênis, nem mochila, nem TV, computador, celular, nem tanque de lavar roupa! E que estudou somente até o 3º ano, porque, naquele tempo, trabalhar e sobreviver era mais importante que estudar... Por outro lado, a bisneta também não tem ideia do que seja brincar na rua, nos terrenos baldios; subir em árvores; lavar roupa no rio, andar de pés descalços pelos matos, trilhas e ruas, sem medo.
        Ouvi meus filhos, meu marido, meus irmãos e sobrinhos expressando carinho, respeito e gratidão pela vó Ica e isto encheu meu coração de alegria! Porque considero vital este “pertencer”, o estar, importar-se, valorar, respeitar e cuidar um do outro; reconhecendo e atualizando diferenças, as dificuldades, os limites, as imperfeições de um e de todos, das crianças aos velhos. Não acredito no apontar; acredito no estender a mão! No olhar, escutar, perceber, perdoar e recomeçar. Mas nem sempre as coisas são como gostaríamos. São como podem ser, porque temos o direito sagrado, graças a tantos e tantas lutas, de escolher; de ir e vir! E nisto de escolher, por vezes descuidamos, magoamos, rejeitamos... deixamos de ver, escutar e nos afastamos. Por isto, ainda, em nossa cultura, muitos idosos estão à margem. Esquecemos que um dia seremos os velhos.
        Há um livro, belíssimo, do Valter Hugo Mãe: “A máquina de fazer espanhóis”... “ele conta a história de um barbeiro que aos 84 anos perde a esposa e se sente desolado, assustado, descontrolado, com raiva por sua filha nem ter esperado superar o luto de sua esposa e ter lhe colocado em um “lar para idosos”, longe de seus pertences, distante da memória de quem um dia fora, como um inválido. Ler o livro é não deixar de pensar sobre nossa própria velhice, sobre o futuro. É pensar em quem você foi e quem agora é... Ler esse livro é também lembrar dos avós que você não mais conversa e que devem ter um mundo de vivências das quais você não mais se dá conta quando passa rápido por eles, e só acena um rápido “oi”. Um livro imperdível! Oportuniza extensiva reflexão e um encontro muito verdadeiro com a realidade.
        E hoje, no dia do aniversário da minha mãe, eu me sento inflada de gratidão por todo carinho e cuidados que ela teve para comigo, meu pai, meus irmãos, sobrinhos e com meus “filotes”, desde sempre! Dentro de suas possibilidades. E me ponho a pensar, refletir; comparando a jovem que ela foi com a senhorinha que hoje é... vislumbrando e fazendo minhas leituras sobre a passagem do tempo, ali, nas marcas, postura, atitudes, olhar, mãos da nossa vó Ica ... Ah! Tanta coisa, ainda, para trocar, com ela... E atualizo, renovo, com urgência, meu desejo de estar junto, conversar, rir, ouvir e relembrar histórias... Curtir sua presença! Feliz aniversário, mãe! Belos horizontes para todos nós, juntos! 


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2023, 14o aniversário do Blog! O meu desejo, por estes tempos, é de um pouco de calma, um pouco de paciência, um pouco de doçura, de maciez, por favor! Deixar chover, dentro! Regar a alma, o coração, as proximidades, os laços, os afetos, a ternura! Um pouco de silêncio, por favor! Para prestar atenção, relaxar o corpo, afrouxar os braços para que eles se moldem num abraço!

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