Véia no volante

       

              Voltava do mercado. Anoitecia mas a rua, contornos e buracos ainda eram bem visíveis. Estava muito cansada; mal suportando o tempo de chegar em casa, guardar tudo e, finalmente, descansar...  Observei, que, à frente, à esquerda, duas senhoras seguiam a passos lentos, descansadamente... Perto da esquina onde eu deveria dobrar, passei por elas e, surpresa, ouvi:
        - “Nossa! Uma véia dirigindo”...
        - “É! E não é que ela dirige bem”?!!!
        Claro! Não havia dúvida nenhuma a respeito da destinatária  daqueles elogios eloquentes! Fiquei chateada, sim. Fiquei! Quando olhei para elas; vi que eram tão velhas como eu e me dirigiam risos debochados. Não gostei do deboche. Não me fez bem. Eu  poderia rir com elas, se não fosse o deboche: que mal tem uma velha dirigindo bem?!!!  
        Refleti, depois, como sempre faço quando algo externo “me pega”. Se eu não quisesse ser chamada de “véia”, deveria pintar os cabelos; fazer plástica. Concluí que o meu ”chateamento” não vinha da palavra “véia”, porque estou, de fato, velha (claro que não “tãããooo velha”, ainda!!!!); adoro meus cabelos brancos; assumidos porque não suportava aquele ritual mensal de ir ao salão, “fazer a raiz” e porque gosto desta fase e do que ela me proporciona: ser avó e ter mais paciência, tolerância para lidar com minhas questões internas e com o outro, qualquer outro.
        O meu “chateamento” vinha do deboche. E do implícito no deboche; nas exclamações e nos risos debochados. Teriam, elas, feito este mesmo comentário se fosse um “véio” que estivesse dirigindo, meu marido, por exemplo? Desejaria tanto dar este crédito a elas! Considerar que o que eu poderia interpretar como “ojeriza”, “menosprezo”, “quizila”, “estranhamento”, “execração”, “malquerença”, “objeção” (para não usar os termos “preconceito” e “desrespeito”, tão “batidos” e, sim, alguns sinônimos) a uma pessoa (eu, no caso) por estar enquadrada em dois quesitos bem sensíveis e visados: velha e mulher; foi apenas uma “ingênua brincadeira”, uma “bobiça” do momento. Queria dar a elas o benefício da dúvida e não fazer um prejulgamento; engrossando esta fila terrível...
        Porém, o deboche é uma grosseria, um insulto. As ressalvas, objeções, banalizações, senões a isto e aquilo e a este ou aquela, por causa da sua condição singular e do momento, são dolorosas e têm graves consequências. Eu não desejo maximizar o ocorrido; tampouco, minimizar. Só pensar. Conversar um pouquinho...
        Tenho ouvido que as pessoas estão fazendo muito “mimimi”, exagerando com questões de bullying, preconceito, etc; e que há um tempo atrás, muitas destas coisas eram consideradas normais; não tinha problema. Não concordo. Sempre teve problema! O que não tinha era espaço e acolhimento para fala e escuta. Quem dá os “apelidos”; faz os comentários, acha e sempre achou “mimimi”. Aquele que ouve, não. Uma vez, numa escola, ouvi alguém chamar a colega de “banana”. Eu intervi imediatamente: “o nome dela não é banana; respeite”!. Mas a própria garota disse: “não faz mal, professora, ele pode me chamar de “banana”, é meu amigo”! Na semana seguinte, procurou-me: “professora, não estou gostando! Todo mundo está me chamando de “banana”; eu não quero, me ajuda”!.... Tive, no início da adolescência, uma professora de Educação Física muito competente e exigente. No jogo de vôlei, ela gritava para mim: “pega a bola, bibelô”! Nunca consegui pegar a bola e nem jogar vôlei.
        Na verdade, nunca podemos prever o que deixará marcas ou não. Por isto, a melhor coisa que temos de conquista, hoje, neste sentido, é poder falar sobre isto! Dizer ao outro como nos sentimos a respeito. Isto é bom para ele, também! Se, naquela época, eu tivesse feito uma queixa aos meus pais, provavelmente eles diriam que eu deveria me esforçar mais; que a professora estava certa. Mas eu não me atreveria a fazer isto: imagine, questionar a atitude, a fala de um adulto, um professor! Depois de adulta, fiz muita piada com isto, para disfarçar; mas de verdade, foi sério e me paralisou para o vôlei; até mesmo nas brincadeiras fora da escola.  
        A fala e a escuta são das coisas mais importantes que temos. Eu pude falar disto, um dia, na análise e ver o quão fundo tinha ido... E aqueles que não têm escuta? Nem condições de ir numa análise? Muitos disseram e dirão: “mas que coisa boba”, “quanto mimimi”! De fato, o que não nos atinge, parece bobeira.
        Eu e meus irmãos nos chamamos de “mano véio”, “mana véia”! E circula, por aí, uma gíria: “véio” pra cá, “véio” pra lá... São contextos diferentes. Há um consenso. Um lugar. Uma cumplicidade. Diferente dos outros contextos e da intenção de menosprezar, diminuir, ferir. Por isto, importante falar, conversar, refletir. Não banalizar; não tornar “lugar comum”.
        Parece que são as pequenas coisas do cotidiano que vão sendo repetidas, repassadas, inadvertidamente, sem reflexão, atualização; por ignorância ou só por “brincadeirinha”; as que vão cristalizando dentro de nós e nos impedem viver em paz, reconhecendo o direito, a forma, o lugar, o sentimento, a vontade, a vez e a voz do outro, qualquer outro.

        Doloroso constatar esta falta de percepção de si e do contexto; esta falta de empatia e tolerância. Eu penso que podemos, sim, avançar e deixar de lado os “mimimis”; que pra mim, são as justificativas dos indelicados, grosseiros e narcisistas e não as queixas daqueles que se sentem desrespeitados. Podemos amadurecer e deixar a infantilidade de lado; nos reconhecendo e reconhecendo o outro, qualquer outro. Falando e escutando: assim aprenderemos conviver com respeito e leveza. Brincadeira é tudo de bom quando todos se divertem.

 

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2023, 14o aniversário do Blog! O meu desejo, por estes tempos, é de um pouco de calma, um pouco de paciência, um pouco de doçura, de maciez, por favor! Deixar chover, dentro! Regar a alma, o coração, as proximidades, os laços, os afetos, a ternura! Um pouco de silêncio, por favor! Para prestar atenção, relaxar o corpo, afrouxar os braços para que eles se moldem num abraço!

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