Guardados (2) - Neta de vidraceiro


         Quando era pequena, ouvia muito a expressão “sai da frente! É filho de vidraceiro?” sempre que alguém se colocava, advertida ou inadvertidamente, na frente de algo. Quando acontecia comigo, eu brincava: “sim, sou neta de vidraceiro”! Meu avô paterno colocava molduras em quadros e isto incluía o trabalho com vidros. Eu achava o máximo o trabalho do vô. Ele trabalhava para uma  grande loja na cidade, na época. Tinha um canto só para ele. Na verdade, um lugar escuro, cheio de prateleiras. De um lado,  prateleiras estreitas e fundas, onde eram guardadas as molduras, umas varas compridas, de vários tipos. De outro, prateleiras mais largas, onde ficavam os vidros. Num outro canto, as ferramentas. Lembro de uma mesa, onde ele cortava os vidros, as molduras e montava os quadros. A gente podia visitar o vô, ali; ele trabalhava sozinho; com a porta aberta  para uma rua movimentada... Sempre que por perto, chegávamos para dar um “bom dia! Boa tarde, vô”! Ele gostava e convidava para sentar num banquinho. Eu gostava de ficar olhando para ele enquanto trabalhava. Era caprichoso e rápido na montagem dos quadros. Era bonito ver! Íamos conversando coisas, que não guardei. Guardei o carinho com que me recebia e oferecia os taquinhos das molduras que sobravam. Tinha uns tão lindos! Com bordas douradas, outras prateadas, com relevos... eu me encantava! E levava pra casa, cheia de alegria. Contavam que ele tivera problemas sérios com bebidas por muito tempo, anos antes. Mas eu não conheci este vô. Eu só lembro deste que era doce e tímido, olhos observadores, acolhedores. Tinha pavor de chamar atenção; ser inconveniente, atrapalhar os outros;  falava baixinho. Meu pai, nesta época, era “caixeiro viajante”; ficava toda semana fora de casa. O vô se preocupava com a gente e uma ou duas noites, na semana, aparecia lá em casa, depois da janta; bem na hora em que a mãe passava roupa e eu e meus irmão estávamos ao redor da mesa, fazendo as tarefas de escola. Ele conversava com a mãe, pegava meus irmãos menores no colo e cantava baixinho, meio envergonhado a música do cavalinho, em alemão... era tão bom... Ficava uma hora mais ou menos e depois ia embora. Nos sentíamos queridos. O vô era destas pessoas que não invadem e não impõe presença, mas estão sempre perto, parceiras e respeitosas. Eu o vi pela última vez, no Natal de 1980, quando minha filha nasceu. Soube que depois de conhecer a bisneta ele falou para alguém: - “Vocês não sabem o que me fizeram... me fizeram bisavô !!!”. Faleceu uns dias depois. Eu guardo estas imagens e sua voz, junto com a da vó, cantando: “o  tannenbaum, o  tannenbaum, wie grün sind deine blätter...”.

 

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