05 - "MÉDIO DE BONITO"

     Uma das coisas “tocantes”, entre tantas especiais que guardei e que fizeram com que me reencantasse  cotidianamente pelo meu trabalho, perseverando e acreditando nele, há mais de 30 anos; aconteceu no meu primeiro ano de trabalho numa escola, quando mudei de cidade e de estado, há uns 19, 20... anos atrás. Minha preferência era alfabetizar e logo fui informada, por colegas que nem conhecia, que de fato, havia uma classe de 1ª  série para mim; só com crianças repetentes, com problemas de aprendizado e comportamento. Entendi logo que era uma turma que ninguém queria e que bom que eu chegara, pois sendo “nova” no contexto, não tinha direito de escolha e ia passar pelo teste aplicado às “professoras novatas ”. Parece que havia um rótulo e uma tradição:  turmas difíceis, alunos com muitas demandas, muito trabalho,  desafio para as professoras recém chegadas no pedaço! Eu não questionei e aceitei.  Eu queria trabalhar, precisava trabalhar e vinha de experiências diferentes, onde não haviam estes rótulos e critérios.  Nunca gostei de saber  e nem de receber informações sobre os alunos que teria no ano seguinte, pois acreditava e ainda acredito que cada experiência é diferente e cada um deve ter o direito de fazer suas descobertas e construir  sua relação com o outro sem os “pré conceitos” de terceiros. Os alunos desta turma de 1ª série, de fato, estavam muito defasados, alguns repetindo a série pela  terceira, quarta vez. Não foi fácil, é verdade, principalmente porque, além de todas as dificuldades e carências envolvendo aspectos familiares, culturais, sociais e econômicos  comuns nas periferias; os alunos não aprendiam porque eles se achavam “burros”, feios, incapazes; ninguém acreditava neles, nem mesmo os familiares: “este menino é ruim da cabeça, professora... não aprende mesmo...” e, havia uma pessoa do grupo que dirigia a escola, que queria premiar, ao final de cada bimestre,  “os melhores”  alunos da sala. Algumas vezes eu consegui impedí-la, justificando o quanto todos estavam se esforçando e eram merecedores de premiação; mas em algum momento, ela se impunha, enquanto autoridade (tinha  seus motivos, justificativas) e todo trabalho de resgate da auto-estima dos alunos, ia por água abaixo com a classificação de 1º, 2º , 3º lugar... Presenciar a premiação seletiva e excludente, era muito triste e eu tentava compensar os não premiados com elogios, afeto e mostrando a eles o quanto estavam sabidos... Apesar disto, o trabalho fluiu e no final do ano, foi bonito demais! Foram todos aprovados! Não dentro de um “faz-de-conta”, mas também não com perfeição e nem com ortografia correta. Mas todos alfabéticos, conseguindo se expressar, decodificar e merecendo avançar! Havia  brilho nos seus olhos, alegria, desejo de aprender e uma confiança crescente em si mesmos! E havia um em especial... que me tirou muito sono e por isto, talvez eu o tenha amado mais do que os outros; porque tudo nele era para “menos” e tudo lhe parecia  impossibilitado. Ele foi o melhor presente, naquele ano (e me emociona ainda hoje) e talvez só me compreendam aqueles que vivenciaram algo parecido. Ele me presenteou com um pequeno texto, registrando do seu jeito e com poucas palavras, todo o seu resgate naquele ano, que começou com a percepção de si mesmo... :  Eu sou Sebastião, tenho 12 anos, tenho as pernas peludas, to ficando inteligente e sou médio de bonito...”  Eu nunca mais o encontrei, mas não esqueci e a sua expressão “médio de bonito”, ao longo dos anos mobilizou e motiva, ainda,  em mim, respeito pelo meu trabalho, reflexão, ação e afeto.

 

1 comentários:

manoraldo disse...

Fantástica narrativa! Já conhecia a história, mas lendo-a (pela primeira vez), pareceu totalmente diferente... mais especial, talvez um pouco mais próxima do que ela provavelmente representou para você. 100% Tonches.


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2023, 14o aniversário do Blog! O meu desejo, por estes tempos, é de um pouco de calma, um pouco de paciência, um pouco de doçura, de maciez, por favor! Deixar chover, dentro! Regar a alma, o coração, as proximidades, os laços, os afetos, a ternura! Um pouco de silêncio, por favor! Para prestar atenção, relaxar o corpo, afrouxar os braços para que eles se moldem num abraço!

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