Capitulina (6) e o "caso da embreagem"

Congestionamento quilométrico e sinuoso ao cair da tarde. Em longas filas, o trânsito fluía lentamente. Prisioneiras do engarrafamento e escondidas da garoa fina e fria na tarde de outono com cara de inverno, as pessoas, dentro dos seus carros, ruminavam seus pesares, lastimavam a perda de tempo na véspera de feriado. Capitulina, no seu carro, ouvia música, escutava o som das buzinas expressando  as queixas, o inconformismo do outro e se perguntava o que tudo aquilo ali tinha a ver com ela, por que estava presa, naquela horrível fila. Acontecera um acidente feio, diziam, lá na frente... todos os dias e mais de um num mesmo dia, acidentes e mais acidentes! Desrespeito, banalização, impunidade; cansaço, perigo e tensão: ingredientes cotidianos no trânsito...  Queria estar em casa, lendo, dormindo... porque cedera ao convite da amiga para tomar um café colonial na beira da estrada, num dia chuvoso e véspera de feriado? Tanta coisa para fazer e agora ali, presa... e ainda os semáforos! - Puxa! Para que tantos! – ruminava. -“Vai ver” eles também eram responsáveis  pela lentidão do trânsito! - E, justamente numa parada num semáforo, o barulho  vindo  debaixo! Seguido  de um “solavanco” e do consequente "desligamento" do motor... – Meu Deus! Não faltava mais nada, a não ser o carro enguiçar agora! - Tentou religar o veículo e então percebeu que a embreagem não estava funcionando... Logo ouviu o “coro” das buzinas: o sinal abrira e ela estava parada, impedindo o deslocamento dos outros!  Abriu o vidro e fez sinal para que passassem pelo lado, dando a entender que estava com problemas. Alguns conseguiram passar, mas outros não, por causa das filas paralelas... O motorista que estava atrás, desceu e veio até ela e perguntou, bastante impaciente, o que estava acontecendo. Explicou que a embreagem não funcionava. Então, ele chamou outros motoristas e Capitulina teve seu carro empurrado até o acostamento da larga avenida. Os carros puderam seguir seu destino e Capitulina ficou ali, ruminando raiva e lágrimas. Lembrou do seguro. Ligou e depois de algumas horas de espera e de muito inconformismo, estava sendo rebocada para uma oficina “24 Horas”. Voltou de táxi para casa; ligou para amiga que a esperava no café colonial, se desculpando. Preparou um chá e sentou-se, exausta, chateada, profundamente irritada.  Embreagem quebrada. A palavra ficou martelando na cabeça. Embreagem... Na internet encontrou que “a finalidade principal da embreagem é possibilitar unir algo funcionando com algo parado e isso tem necessariamente de ser feito de maneira progressiva... “e suavemente”. O “algo funcionando” é obviamente o motor e o “algo parado” é a transmissão às rodas”... Capitulina sentiu uma quentura, lendo. Algo que veio do peito e se irradiou pelo corpo todo! Um lampejo de consciência! Se pôs a pensar, tentando recordar em que momento da vida perdeu a paciência, a tolerância, a suavidade... quando foi que tornou-se marionete dos acontecimentos; perdendo o controle dos pensamentos e sentimentos... quando foi que a secura instalou-se e junto com ela as queixas, as reclamatórias, o azedume, o pessimismo e a mesmice... deixando de observar, se perceber e de entrar nas situações e demandas com cuidado, com atenção; sem exageros e pré-concebidos, preconceitos; com calma? E, de repente ficou contente com as ideias e sentimentos que estavam brotando com estas reflexões! E, considerou que ainda bem que fora somente a embreagem do carro que quebrara definitivamente! 

 

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2023, 14o aniversário do Blog! O meu desejo, por estes tempos, é de um pouco de calma, um pouco de paciência, um pouco de doçura, de maciez, por favor! Deixar chover, dentro! Regar a alma, o coração, as proximidades, os laços, os afetos, a ternura! Um pouco de silêncio, por favor! Para prestar atenção, relaxar o corpo, afrouxar os braços para que eles se moldem num abraço!

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