O melhor professor


Das árvores,
as folhas soltam-se
ao sabor
do vento,
da chuva
das estações
e do seu tempo...
Entregues e preguiçosas,
acumulam-se,
na calçada,
ao longo do meio-fio,
na rua...
        Durante muitos anos, onde estivesse, meu pai celebrava um ritual com estas folhas que envelhecidas, precocemente ou não, perambulavam pelo chão, pisoteadas, ignoradas, rejeitadas. Todos os dias, ele, a vassoura, as folhas e o que mais estivesse ali jogado. Um encontro firmado, juramentado;  fizesse chuva; fizesse sol.
        Quando possível, eu gostava de observar e acompanhar este fazer matinal, meticuloso e teimoso do meu pai. Ele exagerava: varria também a rua e muitas vezes, extrapolava o seu espaço e varria os espaços dos vizinhos, por puro prazer! Mas era demais para suas condições físicas. No entanto, os exageros sempre foram sua marca registrada; seu charme e seu prejuízo. Isto não teve jeito.
        Ele varria e classificava; organizando montinhos: folhas, pauzinhos e outros descartáveis encontrados; encaminhando cada qual para um destino.
        Eu pensava e ainda conjeturo sobre o que mais o meu pai varria, ali? Lembranças? Culpas? Saudades? Excessos? Sonhos? Esquecimentos? Amores? O tempo?
        Não varria com raiva, nem com pressa, nem de qualquer jeito. Varria com zelo, com carinho, com capricho. Muitas vezes, depois de tudo limpinho, lá vinham deslizando outras e mais outras folhas e ele, pacientemente, como numa dança, esticava a vassoura e puxava uma a uma... até combinar uma trégua! Não era como se desprezasse, juntasse lixo. Nem que isto o aborrecesse! Era como se acolhesse, protegesse aquelas sobras, aqueles descartáveis... destinando a eles um último olhar, um último cuidado. Era um trabalho bem feito. De entrega, doação e interação funda; como outros que fazia. Era bonito olhar! Assim como sempre foi apaixonante observar minha mãe passando roupa... uma arte!
        Nestes últimos dias, em que o pai esteve doente, as folhas se acumularam sobre a calçada, sobre o meio-fio e  sobre a rua, num claro lamento. E quando, ele definitivamente decidiu ir embora; levar seu olhar sutil e riso maroto para curiosar outras mãesagens por aí; eu decidi varrer, sentindo-me guardiã deste seu fazer. E foi tão bom! Mas, com certeza, preciso de treino cotidiano.
        Num destes momentos de treino matinal, uma senhora passou e perguntou-me:
        - Bom dia! Tem notícias do seu “Schimite”, o velhinho que estava sempre varrendo esta calçada... soube que está doente...
        - Bom dia! Ah! Ele faleceu, senhora! – respondi, a emoção subindo para os olhos.
        - Puxa! Que pena! Mas Deus sabe o que faz.... – consolou ela, mostrando-se bem despachada e, emendou, curiosa: - E a senhora, trabalha aqui? Quem é?
        Ah! Minha memória funcionou rapidinho! E atualizou, num de repente,  momentos e situações em que ouvimos, eu e meus irmãos, a mesma pergunta, durante longos anos, num passado nem tão longe assim e para a qual tínhamos uma mesma resposta, cheia de significantes e orgulho: - “Sou filha do Schmitz, lá do Samrsla”  ou “Sou filha do Schmitz, lá da Casa dos Retalhos” (lugares onde o pai trabalhava). Éramos, nós quatro, reconhecidos no reconhecimento da figura, das qualidades e responsabilidades do nosso pai. Era bom demais!!!
        Curti fortemente a lembrança; mas o momento era outro. Respirei e falei:
        - Sou a filha dele, do velhinho, do Ximitão! Estou aqui aprendendo  como se varre bem uma calçada, agora que ele não está mais por aqui!
        Ela me olhou um pouco surpresa e seguiu seu caminho, sem saber o que dizer ou sem querer dizer alguma coisa. 
        E eu quase pude ouvir o riso debochado do meu pai e a frase que enjoamos de tanto ouví-lo repetir, sempre que acontecia algo assim: meio sem jeito, meio sem graça, meio errado, meio chato, meio “mico” com ele ou com algum de nós: -“ Não se preocupem, isto acontece nas melhores, nas piores e nas médias famílias...”! 
            Apesar do pouco treino, dizem que estou varrendo bem. Bah! É que tive o melhor professor!


 

12 comentários:

Unknown disse...

EMOCIONANTE...

arlete disse...

Chorei...

Unknown disse...

Emocionante Maisa!

Unknown disse...

Noooooooossa, "mana véia" !!!!!!!!!!
Só vc mesmo hein ???????
Fantástico !!!!!!!!!!
Amo vc !!!!!!!

Unknown disse...


𝐿𝒾𝒾𝒾𝒾𝓃𝒹𝑜 𝓉𝑒𝓍𝓉𝑜!𝒬𝓊𝑒𝓂 𝓇𝑒𝒶𝓁𝓂𝑒𝓃𝓉𝑒 𝒶𝓂𝒶𝓂𝑜𝓈 𝒿𝒶𝓂𝒶𝒾𝓈 𝓂𝑜𝓇𝓇𝑒, 𝑒 𝒶𝓈𝓈𝒾𝓂 𝓈𝓊𝒶 𝓂𝑒𝓂𝑜́𝓇𝒾𝒶 𝓋𝒾𝓋𝑒𝓇𝒶́ 𝓈𝑒𝓂𝓅𝓇𝑒 𝒶𝓉𝓇𝒶𝓋𝑒́𝓈 𝒹𝑒 𝓃𝑜́𝓈, 𝒹𝑜 𝓃𝑜𝓈𝓈𝑜 𝒶𝓂𝑜𝓇, 𝒹𝒶 𝓃𝑜𝓈𝓈𝒶 𝓈𝒶𝓊𝓊𝓊𝓊𝒹𝒶𝒹𝑒...

Unknown disse...

Querida Maísa,só você para fazer desse momento de dor,algo tão lindo!!!!chorei!!!!amei!!!contemplei!!!viajei!!!!refleti!!!!obrigada!!!!!bjos

Unknown disse...

Querida Maísa,só você para fazer desse momento de dor,algo tão lindo!!!!chorei!!!!amei!!!contemplei!!!viajei!!!!refleti!!!!obrigada!!!!!bjos

Fernando H.D. Agert disse...

Tu se superou, minha querida! Amoroso, sensível, emocionante e sensacional!

Oficina Pequeno Pintor disse...

Que bela magia, é transformar a dor em poesia ...

Unknown disse...

Lindo Maisa, toca o coração...
Lembrei de muitos e pequenos momentos vossos com o 'voico', que tive o prazer de presenciar/partilhar;o que mais vêem a memória era sempre o carinho e afeto entre todos. Que rica herança deixa o schimitao: amor! Sinta-se abraçada, fiquem bem, um beijo grande deste que tanto lhes quer bem.

Unknown disse...

Jere

Maisa Schmitz disse...


Obrigada pela visita e pelo carinho de vocês!!!!!
Um grande abraço!!!!


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2023, 14o aniversário do Blog! O meu desejo, por estes tempos, é de um pouco de calma, um pouco de paciência, um pouco de doçura, de maciez, por favor! Deixar chover, dentro! Regar a alma, o coração, as proximidades, os laços, os afetos, a ternura! Um pouco de silêncio, por favor! Para prestar atenção, relaxar o corpo, afrouxar os braços para que eles se moldem num abraço!

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