Semana Santa



Páscoa!!! Pronto! As gavetas da memória se abrem e me mostram uma lista imensa de imagens, sensações, cheiros, toques, cores  guardadas ali, bem vivas e intactas... Na infância, a mãe guardando as casquinhas dos ovos, que iam sendo usados no dia-a-dia, dentro de uma bacia; depois a compra dos papéis coloridos, fininhos e lisinhos como uma seda e que a mim pareciam mágicos... ficava observando, encantada, a mãe cortando as tirinhas, molhando na água, depois enrolando-as nos ovos e finalmente, colocando-os no forninho do fogão a lenha. E então, a maravilha! Depois de alguns minutos, ela retirava os ovos do forno: estavam coloridos e as tirinhas de seda, ressequidas e pálidas ao redor! Como num passe de mágica, a cor dos papéis passara para os ovos! Que alegria! Quanta emoção! Estes ovos apareciam, dias depois, nas nossas cestas, minha e dos meus irmãos, na manhã do domingo de Páscoa! Cestas que tínhamos que procurar, pois estavam escondidas em lugares inimagináveis! Que angústia para aquele que via os irmãos encontrando as suas, sem conseguir descobrir o esconderijo da sua... mas que alegria, encontrá-la e depois conferir o que estava ali dentro! Quanto bem, quanto alimento para a imaginação, para a alma! E eram coisas muito, muito simples! Mas o máximo, o super, para nós! Depois íamos na casa da vó Aurélia e lá sempre havia uma cestinha nos esperando, com alguns doces que a vó fazia e ovos, também coloridos; só que os da vó, eram ovos cozidos, que tínhamos que consumir logo! Gostávamos de pegar e quebrá-los na cabeça um do outro! Sabíamos que estavam cozidos!!!! Era uma delícia! Quebrar e depois comer! E a memória vai descortinando mais coisas: cheirinhos e sensações  capturados em algumas daquelas manhãs e que ficaram marcados, eternizados ali... grama cheia de orvalho, cheiro de capim; manhãs luminosas, com sol radiante, céu azul e um friozinho gostoso; abraços e sorrisos dos adultos queridos; família reunida para almoço e conversas prolongando-se pela tarde... O gosto do doce associado a estas coisas boas de proximidade, sensação de proteção, afeto, carinho, de pertencer a algo! Um pouco mais tarde... quando? Quantos anos depois? Não sei, mas a conotação religiosa em algum momento entrou. A igreja, o padre, os rituais. Muita gente erguendo ramos verdes, cantos, cheiro forte e doce, ao mesmo tempo (incenso) vindo junto com a fumaça que saía de um potinho (turíbulo)... domingo de ramos! As imagens da igreja cobertas com um pano roxo, escondendo algo, um mistério... a procissão, caminhada longa, pelas  “subidas e descidas” das ruas ligando as duas igrejas católicas da cidade... culminando com discursos exaltados dos padres e depois com a  fila, para beijar o Jesus morto, dentro da igreja. Dois depois, a missa triunfal da ressurreição; uma festa para o Jesus que “vivia de novo”! Quanta emoção diante de coisas que não entendia, mas que mexiam muito com meu mundo interior, minha imaginação.  Mais tarde, na juventude, tudo, gradativamente, teve uma outra conotação, com  o amadurecimento; com as informações, com a compreensão dos fatos históricos, da simbologia, das metáfora e dos mergulhos nestas questões filosóficas e espirituais; que tiveram sempre um lugar e marcaram a vida, em todos os momentos e contextos.  E deste tempo, muito vivas as imagens do grupo de jovens, dos amigos inesquecíveis; das nossas caminhadas, na sexta-feira santa, antes do nascer do sol, para colher “macela” (marcela para alguns); dos encontros, das reuniões, dos ensaios e representação da “Paixão de Cristo”; das reflexões e conflitos, buscando entender e “casar” as questões religiosas com as sociais, com a realidade, com as contradições que percebíamos nos discursos e práticas dos adultos e da sociedade... E a memória continua, lúcida e precisa,  trazendo recordações mais recentes, da vida adulta. Eu mãe, querendo oportunizar aos filhos, este mesmo encontro com a magia, a beleza; mesmos valores, ideais e ideias envolvendo a Páscoa... algo bastante difícil e quase infrutífero, porque os tempos são outros, com pouco espaço para encantamentos e “magias”; com muita racionalidade, muita realidade já para os pequenos; muito apelo para consumir, gastar, comprar pronto,  pular fases e incentivo para a reprodução precoce dos comportamentos, falas,  gostos e atitudes dos adultos. Muita secura, vazio, banalização e superficialidades povoando a infância destes nossos dias. Como foram importantes a fantasia e a imaginação nos momentos de brincadeira ou solidão e abandono de fato, ou somente a sensação ou o fantasma deles, na infância. Ajudaram a suportar, transformar, organizar, amadurecer  e enriquecer a vida. Semana Santa: santa de ser boa e especial. Boa de “coisas boas” para lembrar, fazer, experimentar, descobrir. Boa nas tentativas, no exercício de “juntar” passado e presente; vida e religião, matéria e espírito; corpo e alma; saudades e realidades; o possível e o impossível, o palpável e as sutilezas...  Especial de nos destacar como indivíduos, sujeitos únicos e insubstituíveis neste universo de tantas criaturas. A tal ponto de uma "divindade" vir até o nosso nível e dar a vida por amor a nós (independente de ter sido exatamente assim ou não, de ser realidade ou fantasia). Maior prova de amor não há. Quem ama sabe. Sabe porque dá a vida, a qualquer hora, em qualquer dia, num impulso, sem refletir, nem questionar, para o ser amado. Só depois que encontrei em mim mesma esta certeza e disposição em dar minha vida por aqueles que eu amo, se isto fosse preciso para que fossem felizes, ficassem bem; entendi alguns destes mistérios apaixonantes que envolvem a Páscoa. 

 

0 comentários:


Minha foto
2023, 14o aniversário do Blog! O meu desejo, por estes tempos, é de um pouco de calma, um pouco de paciência, um pouco de doçura, de maciez, por favor! Deixar chover, dentro! Regar a alma, o coração, as proximidades, os laços, os afetos, a ternura! Um pouco de silêncio, por favor! Para prestar atenção, relaxar o corpo, afrouxar os braços para que eles se moldem num abraço!

Arquivo do blog