Ave, Maria!


      Lutar contra o desejo. É sina e é duro. Aprendi que por trás do desejo está o ego. Não quero fortalecer o ego. Mas meu desejo é grande! De quedar aqui e me entregar a este amor profundo, ao prazer intenso que eu sinto aqui, diante da minha janela e de todas as ferramentas que me permitem escrever. A faxina me chama, a organização da casa, o tanque com suas roupas sujas; as roupas que precisam ser passadas e guardadas; o quintal, as calçadas; os trabalhos dos alunos que precisam ser olhados, lidos, atualizados... tudo isto grita! Me chamando, neste sábado à tarde... mas eu quero ouvir música e registrar meus pensamentos, meus sentimentos! Desço, lavo a louça. Subo e escrevo. Desço, tiro roupa da máquina, estendo no varal, reabasteço a máquina e subo. Escrevo. Desço, passo pano na cozinha. Subo. Escrevo. Desço e fora da casa, subo até a grutinha onde está Nossa Senhora das Dores, limpo, perfumo. Desço o morro. Entro em casa, subo. Escrevo. Desço, limpo um banheiro. Subo. Escrevo. Ouço uma música. Minha vida assim, sempre nestes hiatos. Sempre dividida. Anseio por inteireza. Anseio por algo que é meu, mas que ainda não assumi. Presa aos outros lados meus, conhecidos, antigos e que não querem ceder seu espaço. Responsabilidades com o alheio me chamam, cobram atenção. Não consigo assumir responsabilidade comigo mesma.
        A beleza ao redor da gruta, o acolhimento da Mãe, o mato verde, silencioso e sensível, mostraram-me, com clareza, meu desejo. E não parecia egóico. Parecia bonito. Parecia bom. Parecia certo que eu me sentasse e deixasse tudo o mais pra lá. Seguindo meu desejo. Fico tentada. Sento. Escrevo. Mas o dever me chama. Lá vou eu, outra vez. Antes, pensei: e se eu morro daqui a pouco? Tanta coisa para escrever sobre tudo que ouço dos ventos, do calor, da magia das noites, do balanço das árvores; do que leio nos olhos dos outros e no seu perfil de encontro aos dias... e se a morte vier e me encontrar com tudo isto por fazer e com tanta organização externa para concluir?... Morrer assim, no meio do capítulo, morrer na metade de tudo. Não dá. A tarde está tão bonita! Tenho que encontrar uma alternativa...
       No carro, sigo devagarinho, a fila dupla. Kenny G vira meu coração do avesso. Muros e armaduras, os que ainda resistiam, caem. Sinal vermelho. A fila para. A névoa nos meus olhos, ao contrário, me faz enxergar melhor e eu vejo, dentro da música. Os carros, na transversal, passam rapidamente suas vidas. Meu Deus! Tanto olhar diferente! Tanta história. E eu comungo com eles, como se fôssemos íntimos, na solidão e no passado. Lembranças vêm aos borbotões, intensas e vivas. Nossa dor comum. Não nossa alegria, pois esta é única, singular! Mas a dor, sim. É comum. Dor das perdas, das separações, das injustiças, dos fracassos, das pequenas mortes, dos terríveis desencontros, dos equívocos, das fragilidades, as amarras, das prisões voluntárias ou inconscientes. Dor do que foi e não é mais e que por isto, não é mais nem dor e, sim, saudade! Como o sentimento por um filho que está longe; como a impotência diante da dor do outro, especialmente se é um querido; como vivências do passado, que vão acordando, aqui e ali, marcantes, inesquecíveis, vivas! Tanta coisa poderia ter sido diferente. A voz e o sorriso e a singularidade de queridos que já se foram ou se distanciaram: ai que fundo! Será que podíamos ter aprofundado mais? A saudade seria menor, se tivéssemos dado maior atenção e valor ao que tínhamos lá? Sinal verde. A fila se movimenta, a vida continua; eu preciso, também, ir em frente, com estas minhas intensidades, meus fantasmas e incompletudes. A vida tem espaço para todas estas coisas, ir e voltar no tempo, mas ela exige atenção ao presente e à continuidade. Meus momentos passados, inclusive este último, agora, vão comigo, alguns de comum acordo, outros arrastados... só aquietam quando fazemos acordo, nos olhamos e nos fundimos no papel, transformados em letras e palavras.
    Ave Maria, cheia de graça! O senhor é convosco...   

 

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2023, 14o aniversário do Blog! O meu desejo, por estes tempos, é de um pouco de calma, um pouco de paciência, um pouco de doçura, de maciez, por favor! Deixar chover, dentro! Regar a alma, o coração, as proximidades, os laços, os afetos, a ternura! Um pouco de silêncio, por favor! Para prestar atenção, relaxar o corpo, afrouxar os braços para que eles se moldem num abraço!

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