Capitulina (3) - Invasão

            - Ah! Peguei vocês! Sabia que estavam escondidos em algum canto!
            A cara da tia era assustadora, na porta do roupeiro; olhando para eles com os olhos irados; a boca grande, vermelha, abrindo e fechando, pronunciando palavras e palavras  com grande rudeza. Capitulina mal compreendia algumas delas; sonolenta e assustada.
            - vocês dois... fazendo coisa errada e se escondendo depois? Não adianta se esconder! A mentira, a enganação têm pernas curtas!  Tua mãe não te ensinou, Capitulina? Eu falo isto pro teu primo todo dia!  Agora saiam de dentro deste guarda-roupa! Já!
- Capitulina! Psiu! Ei, Capitulina! Vem cá!
Era o primo chamando. Capitulina largou a boneca e foi ver o que o primo queria. Tinham acabado de almoçar na casa dos tios (estava de férias) e o primo estava convidando para uma “arte”. Os adultos, distraídos, tomavam café, preguiçosos e sonolentos, na varanda. A mesa ainda posta, esperando para ser recolhida; a garrafa de vinho, sedutora, lá... O primo, com todo cuidado; um olho na garrafa, outro no movimento na varanda, apanhou-a de cima da mesa e puxou Capitulina pela mão. Correram para o quarto da vó, que passava uns dias na casa de outra tia. O primo era muito corajoso, falante e sempre cheio de ideias! Com isto, preenchia e coloria seus dias com tantas coisas que ela nem dava conta de absorver no seu ritmo “sem sal” de viver. Capitulina gostava de estar com ele. Sentaram atrás de um biombo e rapidamente consumiram aquele resto de vinho da garrafa.  Era gostoso! Que idéia essa do primo...  mas será que a tia e o tio iriam gostar disto? O primo disse que eles nem iriam perceber. Capitulina sentiu um calorzinho gostoso nas bochechas e no corpo todo e tudo que o primo dizia era muito, mas muito engraçado. Começaram a rir sem motivo! De repente ouviram a tia chamando por eles. Ela estava sempre atrás deles. Ficaram assustados; o riso misturado com um nervoso e num ímpeto, entraram no roupeiro da vó. Era um roupeiro antigo, grande, com um cheirinho de naftalina. A voz da tia chamando por eles distanciou; respiraram aliviados; mas o primo achou que era melhor esperar mais um pouco  para sair. Ele conhecia a mãe. Sabia que ela iria perceber o que tinham feito e não ia ser nada bom para os dois. O calorzinho, efeito do vinho; mais o cheirinho da naftalina, a maciez das roupas, o escurinho  dentro do roupeiro, combinados, trouxe o sono e os dois, cada um pendendo para um lado,  cochilaram. Capitulina sonhava com a tia gritando, sacudindo seu corpo... demorou para perceber que isto estava acontecendo de fato.
Agora, passado o incidente, banho tomado, estava sentada no sofá das visitas. A tia olhava com  desconfiança para ela; deixando-a  muito envergonhada. Queria ir para casa. Será que a tia contaria para sua mãe. E o que a mãe diria... O primo parecia nem ligar. Empurrava o carrinho de madeira pra lá e pra cá, em cima da mesa de jantar. A tia rezava, de repente!
- Oh! Meu Deus, meu Deus!  O que fazer com estas crianças desobedientes? Olhai por elas, senhor! Tenha piedade delas, senhor! Onde já se viu... pegar  escondido o vinho, beber e ainda se esconder! Sabiam que Deus não gosta de criança mentirosa, desobediente? Vocês sabiam que Deus enxerga, vê tudo! Que ele está em toda parte, vê tudo, sabe tudo! Vocês estavam lá dentro do roupeiro, sem luz; mas ele estava vendo. Deus vê tudo. Nada escapa. E depois ele castiga. Ah! E como! Não queiram experimentar!
A tia levantou, lançando um último olhar condenatório aos dois. O primo saiu correndo, brincar na rua com os amigos que chamavam. Nem um pouco preocupado com o sermão da mãe. Capitulina voltou para as bonecas; mas não conseguia brincar. Estava com medo; olhando pra lá e pra cá, buscando os olhos de Deus. Em que lugar estariam escondidos, vigiando seus movimentos?

 

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