O franciscano e o turista

Entrei no mercado  apressadamente. Estava um pouco atrasada para o almoço em casa de minha filha. Na fila do pão  eu me deparo com o inusitado: um franciscano! Em carne, osso e hábito marrom. – Com este calor! – falei para mim mesma. Tive que olhar novamente e muitas e muitas vezes para ele. Era quase irreal. Mas era real. Fui olhando, de cima a baixo, como não ousei fazer nunca! Não gosto de ser olhada assim e tenho vergonha de fazê-lo. Mas, hoje fiz. Tinha que fazer. Era lindo demais! Raro demais. Observei o cabelo, estilo São Francisco; a cruz de madeira no peito, que não parecia nada leve; o cordão branco amarrado à cintura e caindo quase até o chão e, as sandálias! Grossas sandálias de couro; pareciam ser feitas de pneu. Aí, pensei no inverno: deve passar frio! Ele estava comprando um bolo; uma torta. Uma não, acabou levando duas tortas, muito doces e bonitas. Eu fiquei encantada. Com a figura e com a compra. E já entrei na história de Francisco, a romântica. E tudo ficou misturado e já imaginei o frade levando aquelas tortas para dividir com um grupo de pedintes, ou meninos de rua, ou uma família pobre... onde alguém devia estar aniversariando e a quem ele iria “servir”, agradar,  homenagear, destacar, valorar; assim como Francisco, que abraçava os leprosos e sorrindo cuidava de doentes do corpo e da alma... Eu até disse “Bom dia” para ele, mas tão fraquinho, que ele nem ouviu. Ele fazia suas compras, compenetrado e alheio a minha curiosidade excessiva e inquieta. Na verdade, eu queria tê-lo abraçado. Na verdade, eu queria conversar com ele; partilhar um pouco da vida com ele; pois estava ali, trazendo para o meu presente, simbolismos queridos demais para mim. Na verdade, ele próprio um grande símbolo de tudo que me é mais caro na vida. Tive que fazer força para sair do mercado; queria ficar olhando para ele. Ficar perto dele.
Levei comigo uma sensação boa, de ter recebido um presente. Sabe? Destes que a gente não espera e não consegue nem agradecer, porque quem deu saiu rapidamente de cena! E deixou um vazio... mas um vazio preenchido! Preenchido de tanto conteúdo, de tanta e intensa alegria... Não foi preciso chegar muito perto para sentir calor, acolhimento, bem estar, alegria! Imagina se chegasse!
De carro, rumo ao apto da  nossa filha, por uma das avenidas principais da cidade, a Brasil, fomos observando os grupos de turistas que atravessavam, a pista movimentada, de um lado para o outro. Um perigo! A próxima sinaleira fechou para os pedestres; abriu para os carros. Quando íamos cruzar pela faixa, um família, chefiada por um senhor, que devia ser o pai, resolve ignorar o sinal e atravessar a faixa de segurança! Meu marido, que andava devagarinho, conseguiu parar com tranqüilidade, para que eles, então passassem. Mas, gentilmente apontou a sinaleira, para mostrar que ela estava fechada para os pedestres. Então, o “chefe” daquele grupo, ficou muito ofendido com esta sinalização; parou e xingou-nos, fazendo, concomitante, gestos agressivos. Os olhos brilhavam de ira! Aquela hora da manhã, indo para a praia! Cheio de raiva num dia azul de férias!  Não contente, deu um soco violento no vidro traseiro do nosso carro. Foi um barulho horrível! Não sei como não quebrou. Fiquei assustadíssima! Não sei o que poderia ter acontecido se tivéssemos esboçado alguma reação, falado mais alguma coisa. Meu coração, impregnado com aquela presença forte mas doce do frade franciscano, partiu-se diante daquela cena violenta, que só não foi pior, por detalhe. Desejei veementemente sair daquele local; o que não foi muito fácil, pois o trânsito, nesta manhã, como de regra, na alta temporada, estava lento. Ao contrário do que acontecera alguns minutos antes, no mercado, eu queria sair de perto daquele homem, não queria ficar olhando para ele, sentindo a energia dele!
Levei comigo uma sensação ruim, a sensação do desânimo e da impotência; esta que a gente sente diante de uma agressão, ofensa, calúnia, desrespeito, fofoca, injustiça... Sabe? Algo que a gente não espera e não consegue nem explicar, porque não era motivo. Ele, no caso, poderia até não gostar de ser sinalizado pelo outro; mas estava errado. Estava desrespeitando a lei do trânsito; além de dar mau exemplo aos familiares que o seguiam. Não tinha o que discutir. Diante de algumas coisas, não há o que discutir. E isto deixou um vazio... um vazio horrível ... Não foi preciso chegar muito perto para sentir a frieza, a dureza, a impaciência, o mau humor, a tensão, a ira, o desamor daquele homem! Imagina se chegasse!
Assim somos, os semeadores. Cada um semeia aquilo do que seu coração está cheio. Um dia a gente começa colher e não dá para reclamar da qualidade dos frutos.
Mas isto não ficou assim. Minha imaginação voltou a trabalhar... imaginei o frade encontrando o turista. O turista esbravejando, soltando impropérios, espalhando socos pelo ar e o franciscano olhando para ele com olhos amorosos; caminhando até ele e envolvendo-o num abraço irrestrito e fundo, falando baixinho: "irmão turista"...
Assim, salvei o meu dia.

 

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2023, 14o aniversário do Blog! O meu desejo, por estes tempos, é de um pouco de calma, um pouco de paciência, um pouco de doçura, de maciez, por favor! Deixar chover, dentro! Regar a alma, o coração, as proximidades, os laços, os afetos, a ternura! Um pouco de silêncio, por favor! Para prestar atenção, relaxar o corpo, afrouxar os braços para que eles se moldem num abraço!

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