Natal em três tempos

         Quando criança, o Natal era a festa que eu mais amava e esperava. Íamos todos para a casa dos avós paternos. Os tios vinham de Porto Alegre e isto era o máximo! Dava ao clima e ao ambiente um caráter de muita importância e para mim aqueles tios e primas mais distantes, que chegavam com sotaque e suas roupas diferentes e chiques da capital, uma vez por ano, era sinal de que o Natal tinha mesmo algo  especial porque em torno dele, toda família se reunia e todos pareciam felizes, alegres, ao menos naquele período! Havia muito riso, muita conversa; algo que me comovia intensamente. Tínhamos um ritual em casa, nesta época; todos, eu e meus irmãos ganhávamos roupas novas. A mãe se esmerava muito comigo; mandava costurar bonitas roupas e me levava, na tarde da véspera de Natal, dia 24 de dezembro,  no “instituto de beleza” e eu ganhava lindos cachinhos nos cabelos. Minha mãe me fazia sentir assim, naquele dia: especial e bonita, embora eu não me achasse assim nos demais dias do ano. Pelas 18 horas íamos para a casa dos meus avós e lá encontrávamos toda família paterna, de origem alemã: uma porção de tios, tias e primos! As meninas eram maioria e também éramos as mais velhas e comandávamos o espetáculo, as brincadeiras! Organizávamos “shows” de canto e dança que os adultos curtiam e incentivavam, assistindo enquanto comiam e bebiam seus aperitivos. Eu, particularmente me desafiava muito naquela noite, porque era muito tímida e envergonhada, mas preparava e ensaiava sempre uma ou duas canções para apresentar. Às vezes cantávamos sozinhas, outras vezes em grupo e aquilo se revestia de uma magia encantadora, porque nos sentíamos acolhidas, valoradas, apreciadas pelos familiares e isto, só mais tarde compreendi, foi uma base muito importante para que eu tivesse coragem e enfrentasse muitas coisas difíceis para mim, no decorrer da vida. Depois do “show”, vinha o momento sério e sublime, quando ouvíamos discos antigos dos avós com  tradicionais canções de Natal, alemãs. Então, meu avô e minha avó começavam a cantar “O Tannenbaum...”, uma canção linda, em alemão, e todos os filhos deles, meu pai e meus tios seguiam atrás, com as vozes trêmulas de emoção. Eu não compreendia o alemão, mas compreendia o sentimento e ficava ouvindo meu coração bater descompassado.  Quando acabava, meu tio Milton e minha tia Nilse, com suas vozes bonitas e trabalhadas iniciavam  o canto “Noite Feliz”; eu ouvia, então, a voz do meu pai... e, para mim este era o sinal de que  todos podíamos juntar nossas vozes a deles, porque esta cantiga entoavam em português. Ainda hoje eu não tenho palavras para traduzir a emoção que eu sentia e capturava naqueles momentos, naquela noite.
         Os adultos foram envelhecendo e nós, as crianças, nos tornamos adolescentes e jovens. Mas os Natais continuaram acontecendo e reunindo a família na casa  do vô e da vó. Como poderia haver Natal sem as cuquinhas de mel da vó , sem a vinda dos tios, os encontros barulhentos e as cantorias de sempre?! Como estávamos maiores, tínhamos ampliado nosso círculo social e  eu e os primos, agora, fazíamos parte do Grupo de Jovens e, a cada ano, depois do encontro na casa dos avós,  íamos todos para a Igreja, para a Missa do Galo. O Grupo de Jovens, antes da missa, sempre apresentava um teatro, que iniciava, invariavelmente às 23:30 hs. Nós nos preparávamos durante meses para este evento, criando os textos, ensaiando; preparando cenários, luzes, etc. Era uma labuta sem fim e igualmente maravilhosa, à qual nos dedicávamos exaustivamente, cheios de ideais, querendo mostrar aos adultos da comunidade nossas reflexões, denunciar as hipocrisias, as desigualdades sociais e fazer um chamamento à fraternidade, ao respeito e ao amor à natureza, ao homem, à justiça. Queríamos atualizar e contextualizar o sentido do Natal; tínhamos o apoio do padre e isto nos estimulava e nos tornava mais criativos e determinados. Um amigo, o autor principal dos textos e um dos “diretores” do “espetáculo”, escrevia os textos especialmente a cada um de nós, porque dizia que cada um tinha um jeito de dizer as coisas e ele gostava da forma como um e outro expressava determinadas questões. Assim, o Natal passou a ter uma importância maior, porque eu me sentia amadurecida e mais consciente; participante do mundo; deixando de lado a fé ingênua da criança e descobrindo meu lugar  no mundo; querendo denunciar as mazelas, as injustiças  e também anunciar as BOAS  NOVAS, a possibilidade de um mundo melhor e mais feliz.  Antes das questões atualizadoras, questionadoras dos nossos teatros natalinos, havia uma parte inicial onde sempre recordávamos o fato histórico e mágico do nascimento do menino Jesus em Belém e de sua vida entre os homens. Geralmente eu representava, nesta parte, Maria, a mãe do Salvador. Eram momentos bonitos e profundos demais aqueles de vivenciar o papel daquela mãe! Todas os Natais  da infância, os valores familiares, juntavam-se, agora,  ao novo olhar que eu tinha sobre o mundo, aos ideais mais caros que cultivava com meus amigos companheiros e eu me colocava no lugar daquela Maria, que enfrentou o preconceito porque ia ter um filho que não era do seu marido; que teve que fugir para proteger a vida e dar a luz a este filho nas condições mais adversas; que teve que aceitar as escolhas deste filho e assistir a toda uma série de perseguições e sofrimentos decorrentes desta escolha e que culminou com sua morte numa cruz... eu ainda não era mãe, mas como mulher, me solidarizava com ela, descobrindo que as mulheres tinham que ser muito fortes para sobreviver e cumprir seu papel, independente de sua classe social  ou da humanidade/divindade dos seus filhos. Por alguns anos, até mesmo depois de casada, permaneci no grupo e neste ritual de Natal: os encontros sublimes na casa dos avós e depois na  Missa do Galo.
            Em 1980, estava grávida do meu primeiro filho. Não sabia o sexo, esperava por um bebê saudável mas mesmo não querendo admitir, torcia por uma menina! Eu não tivera irmãs, só irmãos e ter uma filha era o meu  mais acalentado sonho. Eu tinha uma lista de nomes de meninas e quase nada de meninos. O médico falou que o bebê  nasceria até o dia 2 de dezembro. Próximo a esta data, eu entrei em licença, para ficar mais tranqüila em casa e esperar o meu bebê. O calor, em dezembro era intenso, os dias iam passando e nada do bebê nascer! E o sonho de que aquele Natal eu  passaria com um filho nos braços, estava se desvanecendo. O médico sinalizou que esperaria somente até o dia 27 de dezembro e se o bebê não nascesse, faria um parto induzido.
            Chegou a noite do dia 24 de dezembro e, como sempre, todos nos dirigimos à casa do vô e da vó, para a tradicional comemoração do Natal.  Agora haviam poucas crianças; os netos estavam crescidos, dois ou três já casados; mas nenhum bisneto. O meu bebê seria o primeiro bisneto e havia uma grande expectativa em torno disso e da demora para este nascimento. Os tios faziam muita gozação! Durante as cantorias e, no momento de maior emoção, quando cantávamos “Noite Feliz”,  eu pedi intensamente pela saúde do meu bebê. Me sentia um pouco cansada  e convidei meu marido para irmos embora; lamentando que neste ano não me sentia disposta a ir à Missa do Galo e também por não estar participando das atividades com o grupo de Jovens. Chegamos em casa e eu olhei para o pinheirinho todo enfeitado,  para alguns presentes embaixo do mesmo e senti uma tristeza porque o Natal chegara e o meu bebê não nascera, como o esperado... e foi neste momento que senti algo diferente! Corri ao banheiro e constatei que a bolsa havia rompido! Ficamos numa excitação intensa, eu e meu marido, correndo de um lado para o outro, arrumando as coisas, ligando para o médico, avisando os familiares... meus irmãos foram chegando e todo mundo queria ajudar! Foi uma madrugada longa! Estava difícil localizar o médico porque era uma noite de festa e ele comemorava com a família em algum lugar; meu marido estava muito nervoso e pedi para que esperasse com os outros e minha mãe passou o tempo comigo; ou pelo menos quase todo o tempo. Não lembro. Mas lembro que no hospital, esperando pelo médico e pelas contrações eu compreendi o que acontecia e como acontecia! Eu me dei conta do presente que recebia; quando em nenhum momento pensara que isto pudesse acontecer! Que a bolsa rompera quase que no mesmo momento em que eu, durante muitos anos entrava em cena, nos dias 24 de dezembro,  no altar, para representar um papel de mãe que dera a luz naquela noite mágica. Neste ano eu não estava representando, estava realmente vivendo! Minha filha nasceu às 7:35 horas do dia 25 de dezembro, Natal. Eu recebia a menina que tanto queria e ela escolhia o dia mais lindo e significativo, para mim, para vir ao mundo: o Natal. Foi o Natal mais lindo de todos!  Vivido no hospital, naquele encontro mais profundo que, nós mulheres temos com a nossa humanidade  e com a nossa feminilidade; algo que não se pode nomear, somente viver; quando se experimenta  todas as sensações; desde a mais completa solidão à mais sublime das interações com todas as criaturas do Universo. Ainda hoje isto me emociona demais, porque as coisas são atemporais dentro da gente! Naquele Natal de 1980, todos os Natais de minha vida se unificaram; a ingenuidade e o encantamento que eu sentia quando criança, com os ideais e os sonhos da adolescência e juventude e com esta realidade de ser mãe, de trazer ao mundo um novo ser! A  BOA NOVA  acontecia de fato e concretamente na minha vida! O desejo, o sonho e a esperança de lutar para construir um mundo melhor tornava-se mais claro, definido. Eu me tornava de fato uma mulher, me tornando mãe e, me tornando mãe, tinha a possibilidade de me tornar um ser humano potencialmente melhor.
            O Natal de 1980 foi o último que passamos com a família reunida na casa dos meus avós paternos; como sempre acontecera até então. Dez dias depois que minha filha nasceu, meu  avô querido faleceu. Depois de conhecer a bisneta ele falava para os amigos, com alegria:
            - Vocês não sabem o que me fizeram!
           - O que lhe fizeram, seu Otto?
            - Me fizeram bisavô!!!!
            Toda vez que o  Natal se aproxima, meu coração se enche de saudades, lembranças e esperança! E eu escuto a voz do meu avô e da minha avó cantando:  “O Tannenbaum...” e isto renova minha alegria e vontade de viver; porque o Natal evoca  e atualiza, dentro de mim, o que sou e no que  eu acredito.


        





 

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