O tio

            O tio chegou, de repente, na tarde fria, com seu vozeirão, enquanto eu, o pai e a mãe conversávamos em torno do mate. Há muitos anos não o via.
            O nono e a nona tiveram 9 filhos, 5 mulheres e 4 homens. O tio era o único dos homens ainda vivo, 79 anos. Todas mulheres ainda vivas. Minha mãe, a mais nova de todos, 72. Sobreviventes de uma vida duríssima; trabalho pesado desde a infância. Conquistando espaço e vida digna com esforço; tudo sempre muito suado, medido, contado.
            A mãe conta que o tio era gêmeo com outro irmão que morreu logo ao nascer; num parto difícil, com condições e recursos precários. Os irmãos todos aprenderam e se iniciaram no trabalho junto com o nono, um italiano típico, que trabalhava na roça, produzindo o que a família precisava para sobreviver; mas que também tinha o talento de carpinteiro; construía casas de madeira para os homens de dinheiro da cidade, que depois as alugavam, faziam negócios com elas. Eu lembro do nono. Morreu quando eu entrava na adolescência. Era um homem grande, de riso frouxo; gargalhada gostosa e irreverente, alegre. Minha mãe diz que era muito bravo, mas eu nunca vi esta brabeza. Eu gostava de ir na casa dele e da nona e gostava mais dele do que dela; esta sim, bastante brava e seca no trato com a gente; mas era o jeito dela, de mulher judiada; sem mimos, sem vaidades, sem doçura e privilégios numa vida de só trabalhar, parir e mais trabalhar.
            O nono contava “causos” que eu adorava ouvir, sentada no chão ou numa cadeira perto dele. Eram histórias vividas e eu ouvia encantada. Contava e de repente dava uma gargalhada que fazia a gente estremecer! Contava e junto fazia o seu “paiero”: cortava o rolo de fumo, depois enrolava na palha e então fumava, soltando baforadas prazerosas no ar,  o cheiro forte enchendo o espaço e criando em torno de si, um clima mágico que alimentava a minha imaginação... ele parecia tão poderoso! E era  afetuoso, caloroso! Diferente do meu pai e do pai dele, meu outro avô, alemão, mais contidos. O nono comia polenta com leite; tomava chá de mate com leite. Nos seus bigodes grandes sempre ficavam gotas de leite. Ele segurava a caneca no ar, depois dos goles, sorrindo, saboreando, como se fosse a coisa mais deliciosa do mundo! Gostava de vinho. Tinha um cabelo grande, grisalho e me parecia sempre despenteado. Muitas vezes cantava músicas italianas, tristes. Ele foi ficando doente, tinha uma ferida que foi crescendo no pé. Eu ouvia conversas que não entendia. Os tios levavam ele para lá e para cá, em curandeiros, médicos e não adiantava. Ele era diabético. Por vezes, eu o ouvia comentar sobre o comportamento dos jovens, netos, que já não respeitavam os pais; das moças que eram “atiradas”, não se davam ao respeito, não se comportavam direito... isto chateava alguns e muitos diziam que ele era chato, impliquento, velho. Eu não entendia o que se passava, não gostava disto. Eu gostava do nono. Depois que ele morreu, não tinha mais graça ir na casa deles.
            E agora, o tio, ali, igual ao nono! Só não tão grande como o nono. Mas o mesmo cabelo desgrenhado, grande, grisalho. O mesmo olhar e a mesma risada! As mãos grandes e calejadas contando sobre a vida dura. Também um contador de causos! Como  o nono! E contou de uma vez, quando nevou por aqui, em 1965 e eu estava na 1ª série... ele trabalhava num posto de gasolina e foi convidado para ir junto com um motorista  levar uma carga para uma cidade próxima. A estrada era de chão, a neve cobria tudo e eles tinham que ir bem devagar e trocando correntes que colocavam ao redor dos pneus, a cada 5 km; cuidando para não cair nos barrancos. O frio era tanto... ainda bem que tinham levado um litro de cachaça; isto ajudou a vencer o frio e o medo... E foi relembrando coisas do passado, junto com meu pai. E ria muito!  De repente falou do quanto gosta de ir aos bailes e dançar! Mas que não gosta destes bailes para a 3ª idade, à tarde. Gosta dos "bailes de verdade", à noite e de dançar a noite toda! Que por vezes, em casa, “pega a Maria” (esposa) e sai dançando pela casa! “Ele sempre foi um pé de valsa...” – disse minha mãe. E ele ficou corado! Cheio de vida, olhando faceiro para nós!
            E me falou do quanto tem viajado pelo mundo através da TV; nomeou cidades, países e o que aprendeu sobre eles... e falou do grande sonho: visitar a Terra Santa. Imediatamente o meu pai falou:
            -“ Mas isto não é para nós”...
            Por um instante o tio ficou calado, processando o balde de água fria. Então eu fui em socorro do sonho:
            - “Imagina, pai! Deixa o tio sonhar! E não é tão impossível assim... hoje existem tantas facilidades para quem quer viajar.”...
            Isto foi o suficiente para o tio se recompor e voltar a falar do sonho e de que ele vai tentar realizá-lo... Não sei se meu coração ficou grande ou ficou pequeno diante disto, mas bateu descompassado! Fui tocada nos meus sonhos! Tive impulso de abraçá-lo, mas me contive porque não construímos intimidade. As quedas, as perdas, as mortes, as dificuldades, as penações, a vida dura, o tempo, a idade não tiraram dele a alegria de viver, o desejo de sonhar e querer. Nem o brilho dos olhos! E completou: estou feliz com o que tenho: uma casinha, uma "Variant", os filhos, a Maria e a saúde! Naquele momento, ele e o nono fundiram-se na minha memória e no meu coração e eu entendi assim, o que ele quis dizer: minha vida é uma vida bem vivida. Tudo valeu a pena e ainda vale. Como diz São Paulo em uma de suas cartas: “combati o bom combate”. E ainda estou vivo, inteiro, desejante!

 

0 comentários:


Minha foto
2023, 14o aniversário do Blog! O meu desejo, por estes tempos, é de um pouco de calma, um pouco de paciência, um pouco de doçura, de maciez, por favor! Deixar chover, dentro! Regar a alma, o coração, as proximidades, os laços, os afetos, a ternura! Um pouco de silêncio, por favor! Para prestar atenção, relaxar o corpo, afrouxar os braços para que eles se moldem num abraço!

Arquivo do blog