Regresso (3) - As filhas do nono

   Ao  redor do leito da irmã mais velha, Olga, Elvira e Ottilia se revezam em conversas em voz baixa; agradinhos a Josephina, a Pina; que olha para elas com seus olhos profundamente azuis, marejados; faces rosadas do frio; boca murcha. Imóvel e aparentemente num mundo a parte, ela murmura coisas, sons desconexos, que uma e outra interpreta, adivinha. Um encontro de lamentos; um pacto de solidariedade entre as quatro. A quinta, Nair, está ausente, neste momento; mora numa cidade vizinha.
Cinco mulheres solitárias, todas viúvas, menos a Ottilia; de repente, a mais desconfortável, pois que solitária de marido presente, vivo. Encurvadinhas, todas elas, cultivando e nomeando suas dores, entremeando as conversas com suspiros e risinhos, sempre que algo bom, lembrança bonita, vem à tona. No rosto, traços de suave beleza consumida pelos anos, pelas faltas, privações e desilusões. Nas mãos, os traços do trabalho duro; muito bem descrito, ali e, de fácil interpretação. – “Ah! A vida foi dura, mas voltaria a viver tudo novamente”! – é uma frase repetida por todas (será que combinaram?), em momentos distintos. E o passado volta, evocado por uma e acolhido por outra: - “o papai era muito amoroso”... “era bravo, mas amoroso”... “a mamãe era mais dura”...  
A Olga “sempre foi a mais brava", casou mais tarde e a vida lhe presenteou com uma filha. A Pina “era muito bonita, loira”; a mais velha... casou com o Donato, "bonitão", “boa pinta”, sempre bem arrumado, sapato branco, bem lustrado! Teve quatro filhos. Elvira, de riso fácil, doce, a mais alegre, divertida; encontrando graça em tudo... teve três filhos homens e perdeu, além do marido, um destes filhos, já adulto e “nunca mais foi a mesma”... Nair, casou por último e foi morar na cidade vizinha. Teve quatro filhos e também perdeu um deles, uma menina, ainda pequena. Um caso doloroso e que ninguém esquece, nem eu. Sempre que alguma criança cai e bate a cabeça, fico apavorada, pensando que pode acontecer a mesma coisa. De onde uma mãe tira coragem para prosseguir em frente, depois que perde um filho? Ottilia, pensativa, observadora, ligeirinha e vaidosa, a caçula, teve quatro filhos e um deles, sou eu, a primogênita e única garota.
Sempre gostei muito destas minhas tias. Sempre admirei a cumplicidade delas e sonhei muito em ter uma irmã para dividir a vida, como elas. Mas não tive. A tia mais próxima de nós, foi a Olga. A que mais "perambulou pelo mundo", morando em várias cidades e estados; até, finalmente, retornar ao lugar de origem. Ajudou minha mãe nos cuidar e “criar”, quando éramos pequenos e o laço de afeto, com ela, sempre foi mais forte. Na infância, a casa dela era o lugar onde gostávamos de ir e esperávamos para passar as férias. Era bom demais! Eu gostava de ir com minha mãe na casa de uma e de outra tia, semanalmente, para o “mate”. Enquanto o mate girava, junto com as bolachas, cucas, bolos e calça virada, a vida era atualizada. E elas riam muito e também se queixavam de coisas que não lembro. Eu lembro apenas da sintonia, do calor e de como era bom ficar ali, entre elas, ouvindo o que não entendia, mas que intuía ser do universo feminino... todas muito trabalhadeiras, caprichosas e peritas na arte da limpeza, do passar uma roupa, lavar uma calçada, fazer uma comida gostosa; um doce mais do que doce! Todas muito jeitosas, com uma elegância natural; sendo que entre, elas, minha mãe, sem dúvida, a mais elegante, sempre magrinha e com bom gosto. Todas mulheres fortes, decididas, porém submissas a seus maridos. Talvez nunca, nenhuma delas tenha percebido sua própria fortaleza, grandeza e beleza e, o quanto estavam além daqueles homens que nem sempre, ou muito pouco, valoraram seu ser e seu fazer. Estudaram pouco, o suficiente “para aprender ler e calcular”. Era assim, antigamente. Era preciso trabalhar e o estudo não tinha o caráter de prioridade que tem hoje. Não avançar nos estudos foi uma pena,  um desperdício de inteligência e talento. 
 Queridas mulheres formidáveis, filhas do nono Cossetin! Eu reconheço e vejo vocês (e o que não alcanço ver, intuo) e todo seu brilho, toda sua beleza, sua generosidade e todos os seus feitos cotidianos (uma lista longa que sai do anonimato na medida que se aprofunda o olhar) dedicados, na gratuidade, aos seus queridos e a tudo que seus corações elegeram como valor.

 

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2023, 14o aniversário do Blog! O meu desejo, por estes tempos, é de um pouco de calma, um pouco de paciência, um pouco de doçura, de maciez, por favor! Deixar chover, dentro! Regar a alma, o coração, as proximidades, os laços, os afetos, a ternura! Um pouco de silêncio, por favor! Para prestar atenção, relaxar o corpo, afrouxar os braços para que eles se moldem num abraço!

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