Coração partido

Estou aqui, revendo, sentindo, contemplando  no  meu coração pulsante, delicadezas!  As delicadezas nos  afetos, na relação com o outro. Algo vital, tão bonito! Vejo o quanto me nutre o afeto, o respeito e a delicadeza do outro.  Vejo quanta indelicadeza ao redor; maus tratos, ignorância. Homens estúpidos que estupram, exploram mulheres. Mulheres enlouquecidas que jogam filhos no lixo. Crianças abusadas e mal amadas por adultos mal resolvidos. Adultos infantilizados que banalizam e artificializam a vida. Homens e mulheres que se vendem, se trocam, corrompem por dinheiro, poder, influência e com isto prejudicam, dificultam a vida dos outros. E penso nas delicadezas e em como tudo poderia ser diferente.
Uma criança, na escola, desenhou corações partidos e escreveu “eu te odeio”. Mas não era para dar importância ao “eu te odeio”. A importância era para o coração partido. O “eu te odeio” era só o disfarce. O disfarce da dor, da mágoa, do coração partido, despedaçado. Que bom que ela conseguiu expressar de alguma forma e que  pode ser compreendida no que de fato queria dizer . Porque se a importância fosse dada ao  “eu te odeio”, o processo e as conseqüências seriam diferentes. “Eu te odeio” queria dizer “eu te amo e estou magoada porque não me olha, não brinca, não fala comigo”!
O mundo dos sentimentos é grande e cheio de delicadezas. A gente não pode medir a importância, a extensão de um abraço, um sorriso, um acolhimento, um olhar, uma atenção, uma palavra, um toque, uma escuta. Nem o contrário disto. Poucos se ocupam, preocupam com isto.  Há, no momento, uma  polêmica nacional em relação ao sujeito alfabetizado, sujeito letrado e o ensino da língua portuguesa nas escolas. O que eu acho de suma importância, porque alfabetizo crianças, trabalho com a língua portuguesa o tempo todo nas séries iniciais e amo! Adoro ler, escrever e adoro ensinar. Mas não ensinar por ensinar, só porque é programa. Ensinar para encantar, para implicar: é bom escrever, é bom ler! Escrever  bem, ler coisas boas sobre nós, o outro, a vida, a natureza, a história, o homem, o universo. Para ter dignidade, oportunidades, voz, vez, lugar, valor. Para crescer, tornar-se melhor partilhando e agregando saberes. Para pensar mais e melhor, com autonomia. Muita gente competente, estudiosos, doutores, pesquisadores, escritores, nós professores, comunidade, políticos, etc... está envolvida nisto, pensando, conversando, deliberando. Mas e sobre a alfabetização dos sentimentos?  Tão importante quanto? Onde começa, como se dá? O refinamento se dá na mesma proporção que na área cognitiva? Parece que não e que uma coisa não tem nada a ver com a outra.
De repente adultos, nos comportamos como crianças, bebês, até (!), nas relações interpessoais. Infantis. Imaturos nos afetos, nas ações e reações. Analfabetos no sentir, perceber;  grosseiros, egoístas, indelicados no trato com o outro. Onde nasce o bullyng, o preconceito, a injustiça? Culpa das crianças, dos jovens? Quem ensina? De onde a mímese? Muitos corações partidos, sem remédio e sem colo, circulam por aí, reproduzindo, cobrando e vingando sua dor.
Por vezes, eu penso, me pergunto se, enquanto humanidade, estamos abdicando da delicadeza? Ficou coisa vergonhosa? Como outros valores? Respeitar, acolher; renunciar a estar, em algum momento em primeiro lugar; doar, valorar e admirar o que o outro faz, quem ele é, escutar, acreditar... A imagem do coração partido e da fragilidade ali expressa me toca profundamente. Se pudermos nos antecipar, nas nossas relações; aguçar e refinar mais os sentidos, especialmente, no trato com as crianças, os filhos... não impediremos que os corações se partam, em algum momento, porque isto se dará; mas com certeza, o acolhimento, a escuta; a mediação respeitosa e madura pode ajudar a fortalecer e depois curar as feridas e regenerar o coração partido; ou até deixá-lo mais bonito, como a história da coroa do rei. 
A coroa deste rei tinha um diamante magnífico que um dia caiu e ficou com uma rachadura. Este "defeito" diminuía o valor do diamante e consequentemente, o poder do rei. Entre muitas peripécias buscando por uma solução, o rei encontrou um artesão que deixou o seu diamante mais belo e valioso e ele próprio, um rei mais poderoso. O que fez o artesão? Esculpiu uma rosa no diamante. Algo de extrema delicadeza!

 

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2023, 14o aniversário do Blog! O meu desejo, por estes tempos, é de um pouco de calma, um pouco de paciência, um pouco de doçura, de maciez, por favor! Deixar chover, dentro! Regar a alma, o coração, as proximidades, os laços, os afetos, a ternura! Um pouco de silêncio, por favor! Para prestar atenção, relaxar o corpo, afrouxar os braços para que eles se moldem num abraço!

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