Vagalumes na janela

        
     Vento e chuva. Inicio da noite; auge da temporada e do calor: um apagão. Sem luz, sem ar condicionado, sem ventilador, sem TV, sem geladeira (ai, meus geladinhos de açaí!) ... 
      Em casa, ficamos assistindo a noite vestir suas roupagens, acostumando nossos olhos às sombras. Vencido o primeiro momento do desconforto e das lamentações, nos aquietamos e acomodamos ao novo; na verdade, ao velho; ao que já foi um dia.
        Algo bonito desvelou-se diante de nossas janelas! A chuva parou. O vento aquietou. Uma mansidão nos envolveu e o desejo de conversar nos mobilizou, sem pressa, sem ansiedade. Contemplamos o contorno dos morros,  mais delineado; vimos o céu mudando de cor suavemente e a cantoria da passarada amainando... até surgir aquele silêncio preenchido de sossego e os vagalumes aparecerem! Lindos! Riscando a noite, agora totalmente escura, como se fossem fósforos acesos aqui e ali, por criaturas aladas... Fizeram um bailado por entre as árvores da mata ao redor. Uns viam seus reflexos nas janelas e se aproximavam, pensando que eram outros vagalumes companheiros, batendo de leve nos vidros. Dois deles entraram dentro de casa. Meu filho pegou e pudemos verificar suas “luzes”, esverdeada  e amarela .. coisa bela! Como pode? Mãe natureza abençoada, com estes filhos tão singulares!!!! Ficaram um tempo ali, diante de nós, todos eles, numa performance maravilhosa de movimentos e brilhos, sensibilizando nosso olhar.
        Conversas e lembranças foram surgindo, numa proximidade gostosa; onde a escuta foi a tônica. Bom escutar a voz do outro, no escurinho. Descobrir tons, nuances... Por momentos fechei os olhos e me detive neste escutar... maravilhoso! Minha mãe lembrou coisas da infância, vivida em Ijuí (RS); de quando não havia luz elétrica e utilizavam lampiões; de quando os banheiros era fora de casa e à noite usavam os pinicos, guardados embaixo das camas. Lembrou; de quando, por falta de água suficiente, nas casas, a mãe dela, duas vezes por semana, escolhia uma das filhas para ajudar; colocava toda a roupa da família, que era grande, num cesto e as duas iam, cedinho, de carroça, para a beira de um rio, longe da casa. Lá, passavam o dia, retornando só à tardinha. Lavavam toda a roupa no rio; umas deixavam por um tempo “quarando”, estendidas ao sol, no gramado verdinho ao redor do rio e depois esperavam todas secarem ao sabor do vento e do calor, estendendo-as sobre arbustos e árvores. Levavam lanche para o almoço. Antes de voltar para casa, dobravam tudo bem arrumadinho... assim passavam o dia, nesta lida trabalhosa; sem imaginar  que um dia existiria  sabão em pó, máquina de lavar, secadora e varal de todos os tipos... Detalhe importante é que o rio, este e os outros que banhavam a cidade, eram de águas limpas! Podiam lavar as roupas e podiam banhar-se; num outro momento.
Meu marido lembrou da infância na colônia, no interiorzão de Nova Prata (RS) ; onde também não havia luz e de como, seu pai, um homem simples, mas  inventivo e de rara inteligência, levou luz para casa, produzindo sua própria energia, construindo uma roda d’água e aproveitando as águas do rio que passava perto. Lembrou de pequenas\grandes coisas que aos poucos foram trazendo conforto  e diminuindo o trabalho para a família, construídas pela mão do pai e aprendidas pelos filhos, que atentamente observavam e valoravam os feitos do pai.
Meu pai lembrou do tempo em que viajava (e sua profissão era conhecida como “caixeiro viajante”) por precárias estradas de chão, pelo  interior do RS e divisa com SC... sujeito ao barro ou ao pó e de como era grande a solidariedade e acolhimento dos fregueses em suas “lojas”, “bolichos”, “atacados”, “vendas” ou “comércios”, espalhados aqui e ali, em distantes povoados; vilas, cidadezinhas, beiras de estradas, “fim de mundos”; convidando-o  para almoçar, tomar um refresco  ou para pernoitar nas casas; partilhando o que tinham.
E eu lembrei do meu nono, Isidoro. Depois da “janta”, quando eu era criança, a mãe lavava a louça e descíamos (pois morávamos numa rua mais elevada; quem conhece Ijuí, sabe dos “sobes e desces”) para fazer uma visita, um serão na casa do nono e da nona, que moravam umas duas quadras de casa. Não conhecíamos televisão, ainda. E o bom era ir na casa dos parentes, conversar. Nós, crianças, adorávamos ouvir as conversas dos adultos e ficávamos ao redor ou no  colo deles, quietinhos, ouvindo... Bom mesmo era ir na casa dos nonos!  Na minha  lembrança, a nona Virgínia era mais séria, cara de brava e um pouco resmungona. Sempre tinha uma reclamação de algo, alguém; especialmente criticava as modernidades; das quais não gostava e às quais os netos estavam sujeitos e por quem ela temia; eu nem lembro quais eram estas modernidades... mas me esforçava para agradar a nona. E ela sempre tinha um doce para agradar a gente! Eu esperava com ansiedade o momento em que ela preparava um pratinho e colocava em cima da mesa para que nós nos servíssemos... O nono “Doro”, como alguns chamavam, era muito alegre! Pelo menos na minha lembrança! Falava muito alto! Tinha um cabelo grande e uma barba descuidada, embranquecida. Pegava a gente no colo! Cantva e contava “causos”, histórias que entremeava com silêncios; quando ou tomava uns goles de chá de mate ou preparava um “paiero”, um cigarro de palha. Eu gostava de vê-lo preparando o “paiero”: cortar as tirinhas de fumo, que tinha a aparência de um salame preto; abrir a palha de milho; arrumar o fumo picadinho, desfiadinho dentro e depois enrolar, devagarinho, até ficar pronto... daí, acendia, fumava e soltava a fumaça para cima, sem pressa... e aquele cheiro de fumo ia tomando conta do ambiente... tão bom! Era um ritual fantástico! Eu achava o nono um homem muito forte e importante. À medida que fui crescendo, aprendi a admirar meus avós e pais pela vida e feitos que viveram: todos uns sobreviventes vitoriosos e valorosos. Hoje, de modo geral, dá-se muito pouco valor ao que temos e ao que nos foi legado pelos pais e outros que nos precederam. É uma pena! Falta às crianças estes modelos para admirar e nos quais se espelhar.
A noite terminou, para nós, desta forma inusitada e rica, num dos balneários mais famosos de SC: sem luz! Acendemos uma vela para chegarmos até nossos quartos. Depois, com certeza, cada um ficou a sós com suas recordações e reflexões. Os sonhos, com certeza, belos. Os meus, pelo menos, sim!  Feito vagalumes batendo na minha janela...

 

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2023, 14o aniversário do Blog! O meu desejo, por estes tempos, é de um pouco de calma, um pouco de paciência, um pouco de doçura, de maciez, por favor! Deixar chover, dentro! Regar a alma, o coração, as proximidades, os laços, os afetos, a ternura! Um pouco de silêncio, por favor! Para prestar atenção, relaxar o corpo, afrouxar os braços para que eles se moldem num abraço!

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